PALCOS

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Fotografias: Pauliana V. Pimentel.

Pouca terra, pouca terra, puuu puuuu, vai partir…

Cosmic Underground desenrolou-se em oito espectáculos/performance numa viagem de comboio que percorreu a Polónia, Estónia e Letónia com destino à Estação de Santa Apolónia, em Lisboa. Um só percurso, estranho, subliminar, avivador de memórias, algumas trágicas a nível histórico e que insistem em permanecer vivas na mente de muitos. Uma viagem ao género On the Road, mas numa versão carris de ferro com espectáculos onde se podem sentir emoções como alegria, apreensão, tristeza, êxtase, euforia e angústia. Todas elas se situam em extremos e não conseguem a proeza de deixar alguém indiferente. O desafio foi lançado ao performer Nelson Guerreiro que decidiu embarcar nesta multifacetada aventura, em que num só projecto diversas peripécias puderam ser vividas, experienciadas e absorvidas, experiências essas que vão saltar do mundo das memórias para o mundo físico do papel. Como? Convidado por Mário Caeiro, um dos curadores do projecto Cosmic Underground, Nelson Guerreiro irá escrever um livro sobre a viagem, numa fusão entre a ficção e o documental em formato livre, num registo diarístico, entrecortado com registos mais teóricos e ensaísticos. Neste composto colocará também o lado humano da sua experiência enquanto indivíduo que fez parte do processo. Ficou acordado que Nelson seria uma espécie de Hunter S. Thompson do Delírio em Las Vegas, devido à sua permanente procura de histórias nas várias cidades onde o comboio parou. Conheceu pessoas, entrevistou-as e serviu de isco para levá-las ao espectáculo…

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Esta deve ter sido uma viagem profícua a nível de vivências. Não só em relação à questão artística como a nível das próprias experiências-limite inerentes a uma viagem de comboio levada a cabo por 40 dias. Queria que me descrevesses a tua história desde a hora de embarque até à chegada.
Parti no dia 18 de Setembro com destino a Tallinn, Estónia. Estive lá durante cinco dias com a restante comitiva portuguesa, da qual faziam parte o artista André Banha, Pauliana Pimentel, fotógrafa da viagem e o Pedro Bernardo, uma espécie de parceiro do projecto. O comboio ainda estava em montagem e assistimos a todo o problemático processo, dada a complicada logística. Importa inclusive salientar que não foi sempre o mesmo comboio por questões práticas e financeiras. Ao longo do percurso tivemos três comboios, o primeiro, lituano, que foi de Tallinn, para Riga e Vilnius. Desta última cidade fomos de autocarro para Toruń, a primeira cidade polaca, e o comboio foi todo remontado para viajar pela Polónia. Curiosamente, os dois compartimentos, dormitório e social eram do tempo soviético. Para além disso todas as indicações estavam em cinco línguas: russo, polaco, alemão, francês e italiano, menos em inglês, o que revela a vontade de apagamento total de uma realidade anglo-saxónica.

Cada vagão contava uma história, ou era invadido por uma performance visual ou auditiva que não se prendia com a anterior. O espectador era constantemente surpreendido com a criatividade que compunha cada vagão. Não havia portanto uma história ou um fio condutor que os ligasse…
Sim, as performances foram idealizadas individualmente por cada artista, mas houve um trabalho dramatúrgico que os unificou.

O facto de serem à volta da obra de Stanislaw Lem?
Sim, num guião escrito a várias mãos. Stanislaw escrevia filosofia através de literatura e pensava o futuro através de parábolas. Muita da sua produção está relacionada com o tempo e com o espaço, daí que o Cosmic Underground, seja uma expressão que procura corresponder a essa dimensão do tempo e do espaço. Uma ideia cósmica, superior, que está acima de ti, mas que ao mesmo tempo te remete para um lado mais subterrâneo. Existe no fundo um fio condutor, pois o professor investiga o tempo e o espaço, e cada vagão corresponde a um momento de investigação diferente. Stanislaw Lem tem uma frase que eu gosto particularmente: “The future is not what it used to be”, o que remete não só para a ideia do que aí vem, que já não é o que era, mas também para o termos de pensar o futuro de outra forma. As carruagens podem não parecer ter um fio condutor entre elas, mas através do texto que é dito pelos actores procura dar-se um significado. Por exemplo, quando se passa da carruagem dos SOFA (uma espécie de Buraka Som Sistema polacos, embora eu deteste este tipo de comparações) para a carruagem da pianista, existe uma relação. Nos SOFA, Tomasz, um dos vocalistas, está eufórico, na sua fase mais extrovertida e afastado de si próprio, totalmente perdido e volta a encontrar-se consigo próprio através do amor, no vagão seguinte através da performance da pianista. Há uma humanização da história. Podemos estar em dimensões cósmicas e underground, mas o que ali está dito é que mais uma vez a solução está no humano. Existe uma procura de outras relações com a própria realidade, que não seja apenas uma relação obediente, e subserviente ao capitalismo. Ali procura-se uma verdade da emoção.

O final “I Love War” é apoteótico! Para além disso não deixa de ser irónica a recolha de dinheiro para a guerra, feita pelo actor, através de um porquinho mealheiro.
Para a guerra israelo-palestina, é importante que se perceba. Nesta instalação do homem coração, que também pode ser vista como o coração do projecto, ele está a pedir dinheiro para o seu alvo de amor: a guerra. Posteriormente ele vai enviar esse dinheiro para os dois exércitos. Também é curioso referir que as letras “I War”, são retiradas de antigos supermercados soviéticos.

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No vagão da instalação Invisibility of Deportation da artista lituana Elina Cerpa, o público não sabe tratar-se de uma deportação de polacos para a Sibéria. Consideras que pode haver uma associação imediata?
As pessoas têm consciência que este espectáculo fala sobre o pré e pós II Guerra Mundial a partir do primeiro momento, na entrada para o primeiro vagão, em que são separadas entre homens e mulheres. Quando se passa ao segundo vagão (Invisibility of Deportation) ouve-se o aviso de que não podem entrar pessoas com claustrofobia, nem com medo do escuro, etc. É evidente que ao ouvir este discurso o público remete esta experiência para o que seria uma deportação para um campo de concentração. Esta carruagem, na Estónia, tinha um cheiro fétido. A performer trabalhou o cheiro das pessoas deportadas e do que seria uma câmara da morte, e para além disso também trabalhou na questão da temperatura, era a carruagem mais gelada e mais desumana. (pausa para cerveja)

Bom, mas voltando a Tallinn…
Já lá tinha estado e foi também uma estadia de reconhecimento, onde fui à procura de alguns sítios. É uma cidade onde ainda se nota a presença soviética, mas foi das cidades mais bem preservadas do regime, onde praticamente não tocaram no centro histórico e por isso se assemelha a uma viagem no tempo, sobretudo à época medieval, transformada num parque temático. Andei no fundo à procura de sítios e pessoas que me permitissem conhecer uma Tallinn mais autêntica. Por vezes limitava-me a descrever os lugares à semelhança do que fazia Georges Perec, uma referência muito importante para mim nesta viagem. Ele tem textos em que só descreve o que está a ver e um dos livros que levei para a viagem foi o Infra-Ordinário, em que o autor escreveu uma lista de tudo o que ingeriu no ano de 1974, o ano em que nasci. Foi devido a este livro que me senti estimulado a escrever uma lista de todas as coisas que comi e bebi na viagem.

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Já que falas em comida, como foi o processo de adaptação, uma vez que existem várias diferenças a nível cultural. Estou a lembrar-me por exemplo do facto de os polacos só fazerem uma refeição diária...
Foi uma questão de hábito. Eles de facto só fazem uma refeição que chamam de “dinner” e que é feita por norma às 16h, no entanto comem várias vezes durante o dia. Para mim não foi complicado porque estava habituado a sair do comboio e aproveitava as minhas idas a bares, restaurantes e cafés para almoçar ou jantar.

O que significa que a experiência gastronómica não foi desastrosa?
Não, eles têm pratos muito bons, principalmente as sopas, que são óptimas, e também fiquei em êxtase com os “piero gi”, uma espécie de raviólis XL com recheios deliciosos, como carne com ameixa ou espinafres com queijo feta. Os pequenos-almoços eram étnicos, comiam um prato de cereais enquanto barravam uma fatia de pão de forma com ketchup, que comiam de seguida.

Então é verdade e não um mito o facto de comerem imenso ketchup?
Eu diria que o ketchup está para a Polónia, como o azeite e alho está para nós. Eles usam ketchup nas coisas mais bizarras, inclusive num prato que faz parte da cozinha polaca, “bigos”, uma espécie de rancho alentejano ou sopa de cozido. Enfim, têm uma relação bastante intensa com o ketchup.

E com o vodka?
Também. E têm dos melhores vodkas do mundo, é bom frisar, e aproveito para dizer que redescobri o vodka, principalmente porque no dia seguinte à festa acordava sem o mínimo de sintomas inerentes a uma ressaca. Eles bebem vodka a qualquer hora, por causa do frio e devido à intensidade da bebida. Costumavam beber shots de vodka puro e em seguida um shot de sumo.

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Puuu, puuuu, o comboio vai partir e após Tallinn segue-se a cidade de Riga, capital da Letónia...
Sim, uma cidade profundamente marcada pelo regime soviético, onde existe ainda uma forte presença visível e invisível na mentalidade e comportamento. Há um contraste muito evidente e Riga é considerada a Paris do leste, pelo dinheiro abundante e por ser uma espécie de cidade da moda. Nota-se inclusive um desejo de progresso e modernidade. Estive num bar chamado Néon Sky Bar, que fica numa torre de três pisos, toda envidraçada, repleta de néons e de leds, onde me senti claramente no futuro. Poderia ter uma legenda como: Neón Sky Bar 2039. Se Estaline ressuscitasse e visitasse Riga, voltaria a morrer com o choque. Se por um lado percorria a cidade e voltava ao período soviético, por outro lado a arquitectura permitia-me viajar no tempo. Também conheci pessoas engraçadas que me levaram às suas casas e onde tive oportunidade de interagir com elas, sendo que muitas vão fazer parte da minha narrativa.

E como foi a interacção com as pessoas do próprio comboio, com os artistas e com toda a comitiva?
A comitiva era maioritariamente composta por polacos e homens. É importante salientar que faltavam mulheres no comboio, havia apenas uma fotógrafa, a Pauliana Pimentel e uma cozinheira, a Justyna, que estava num papel muito ingrato pois tinha que cozinhar para todos, quando só havia um fogão e muito pouco espaço. Existiam, também, alguns problemas de comunicação, uma vez que como falavam polaco na maior parte das vezes, as decisões eram tomadas por eles. Mas posso dizer que a minha interacção com os polacos foi bastante positiva. Eles são muito parecidos connosco e senti uma grande proximidade no estado de espírito. São muito afectuosos e com vontade de se entregarem. Mas claro que senti alguma diferença, nostalgia e melancolia por estar fora e desenraizado. Mas foi uma condição da experiência e representou um desafio.

Um desafio que superaste. Mas o próprio meio em si, o comboio não se tornou bastante desconfortável?
Não, adoro viajar de comboio e estava a fazer a minha viagem. Senti-me muitas vezes dentro de um filme e a viajar no tempo, passando de 1960 para 2039.

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Não existiram momentos de explosão, como o não suportar conviver mais com aquelas pessoas, dada a falta de condições?
Não, a minha relação com eles foi fácil, intensa e amistosa. Houve momentos de explosão, mas sobretudo em ambiente festivo. Bati o meu recorde de dias sem tomar banho: três. E aliás, tudo aconteceu devido à falta de comunicação porque havia espaços para tomar banho e eu não soube, mas não foi preocupante. Aliás, posso associar estas situações a uma experiência big-brotheriana. Estás a viajar com 40 pessoas que apesar de falarem a mesma língua também estão desenraizadas das suas casas, amigos, amores, referências, etc. As suas zonas de conforto também não existiam. Mas, a experiência de estar num compartimento, num comboio, de parar em cidades e calcorreá-las, tem muito romantismo. Eu nunca fiz um interrail e há quem tenha associado esta viagem a uma experiência assim, não só pelo ambiente, como pelo lado sujo e desleixado. A abundância de testosterona tornava o comboio bastante masculino, no sentido literal do termo. Havia uma festa e no dia seguinte o compartimento amanhecia completamente sujo e repleto de copos e garrafas de vodka vazias, esquecendo que havia pessoas que não iam à festa e que acordavam de manhã para tomar o pequeno-almoço no mesmo espaço.

O que te fascina tanto no acto de viajar de comboio? Representa algo de cinematográfico ou até literário?
Sim, tudo isso. Para mim foi muito emotivo ver a paisagem, porque não se tratava de um comboio rápido mas sim de um comboio de carga, e a paisagem era observada de forma lenta, cinematográfica, onde pude apreciar todos os detalhes.

Como foi a recepção da peça nas várias cidades a nível de público e de reacções? Assististe a todas as representações?
Vi pelo menos dois espectáculos por cidade e foram feitos no mínimo cinco, porque houve locais onde só estivemos uma noite. O feed-back foi sempre positivo. Todas as pessoas gostaram das performances e tivemos uma média de 75 pessoas por espectáculo. O público gostou porque cada carruagem oferecia uma experiência diferente. Houve inclusive pessoas que repetiram o espectáculo. Lembro-me de uma mãe que foi ver a primeira sessão com o filho de quatro anos e que não pôde ver tudo porque existiam performances demasiado fortes para uma criança, e que voltou ao comboio nessa mesma noite.

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E como foi o resultado em Lisboa comparativamente com as outras cidades?
Em Lisboa estivemos dois dias e fizemos seis espectáculos. Deixa-me dizer-te, e não é por ser de Lisboa, mas em termos de afluência foi a mais surpreendente e a cidade que teve mais público por espectáculo. No último tivemos 250 pessoas para uma lotação de 100.

Após uma experiência tão intensa, não só do ponto de vista artístico, como íntimo, a nível pessoal, o que é que retiras desta viagem a nível de valores e emoções?
Há uma dimensão do invisível e do inesperado e do dia seguinte que supera o dia anterior. Há uma esperança de que o que te acontece a seguir te permitirá continuar em frente, e não tanto a visão nostálgica de que os melhores tempos já passaram. Baralha a noção de que o passado quando é bom é vivido com nostalgia, ou o passado quando é mau é vivido com ressabiamento ou com angústia e amargura. Por outro lado também baralha a noção de que o futuro trará o progresso ou o melhor dos mundos. Vive-se numa outra dimensão do tempo e do espaço. É uma peça verdadeiramente contemporânea no sentido em que está fora do tempo.

Cosmic Underground
A ideia do comboio-espectáculo partiu do astrónomo polaco Jan Swierkowski, director do Cosmic Underground, que decidiu, apoiado pela instituição científica polaca Instituto B61, criar um comboio artístico baseado na obra de Stanisław Lem. Conta a história de um astronauta que viajou para o espaço à velocidade da luz numa missão que durou dez anos. De regresso à Terra, passaram 127 anos, torna-se testemunha de um choque cultural. Jan compara esta experiência ao que sucedeu na Polónia e em países sob a influência da União Soviética no pós II Guerra Mundial. Estabelece ainda um paralelismo com Portugal na época final do Estado Novo. O projecto resultou de uma parceria entre a Fundação Platon, da Polónia, o Valgus Festival, na Estónia, a Make Art, da Letónia, e o Museu Bernardo, nas Caldas da Rainha.

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