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Fotografia: Inês D'Orey.

Sempre que assisti a demonstrações de danças folclóricas portuguesas fiquei sempre com uma sensação de que, mesmo nos melhores casos, se trata de tristes caricaturas daquilo que as nossas danças tradicionais deveriam ser. Movimentos fechados, caras de enfado, falta de sentimento, pura repetição de gestos. Um cenário triste do qual me habituei a fugir, imaginando o que seria ver a tradição encarnada com vida e sentimento por alguém que quisesse mesmo estar ali a celebrar as tradições e a relação do corpo com a terra e o trabalho. Tudo isto finalmente se concretizou com o espectáculo de Clara Andermatt Fica no Singelo, apresentado no último fim-de-semana na Culturgest e com repetição já no dia 6 de Fevereiro no Teatro Viriato, em Viseu.

Fica no Singelo é uma colaboração entre a Companhia Clara Andermatt e a Associação PédeXumbo, que assentou num diálogo em torno de conceitos como a tradição, o folclore, a revitalização, o revivalismo e o património. O que se viu no palco é uma magia recuperada da tradição social e cultural de um passado português que é quase sempre maltratado. Uma força telúrica transportada para um registo contemporâneo e mais vivo do que nunca. Os corpos dos bailarinos executaram, ao som de música tocada e cantada ao vivo, movimentos hipnóticos e mais fortes do que o próprio corpo. Foi feita uma escolha de decomposição das danças em movimentos partidos e desconstruídos que mais tarde se recompõem e fazem sentido. Como se a dança reconhecível fosse um texto que Clara Andermatt decompõe em palavras ou letras para depois reagrupá-las em maior vigor. Pela primeira vez vi e reconheci o folclore que eu tinha na imaginação, uma celebração da vida, da alegria e da morte, dos corpos e da terra, com força orgânica e visceral, numa remixagem que faz disto uma peça contemporânea, de forte conteúdo cultural, social e artístico. Recentemente, Vera Mantero fez também ela uma abordagem muito mais verbal e conceptualizada a temas da antropologia cultural portuguesa e da etnografia, sem um décimo dos resultados de Clara Andermatt que poucas palavras usou.

Este espectáculo contou com figurinos desenhados por José António Tenente, que conseguiu trazer evocações estilizadas do vestuário popular sem o descaracterizar. No final o público foi convidado a dançar com a companhia. Fica no Singelo é um espectáculo que nos transforma e é para isso que serve a arte. Quem não assistir fica a perder um importante pedaço da cultura portuguesa dos ultimos tempos.

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