Inaugura hoje, dia 30 de março às 18h, na galeria da Livraria Sá da Costa
Esta vasta série de desenhos de Marta Sampaio Soares, de que se apresentam agora na galeria da Livraria Sá da Costa, sob o título genérico Repetição, apenas alguns poucos exemplares, é também um teste à resistência física da autora – no decurso do demorado processo de elaboração dos trabalhos, repetindo exaustivamente o mesmo gesto – e, simultaneamente, um desafio radical ao conceito tradicional de autoria. Neste sentido, estas obras incorporam uma fundamental dimensão performativa, na qual o acidental, o “erro”, o que não foi previamente pensado nem planeado, irrompe no espaço pictórico, diluindo a relevância autoral e instaurando um território de acrescida novidade e liberdade formais. Estes desenhos são, então, metaforicamente, cartografias ou, mais exatamente, tomografias psico-somáticas da artista enquanto máquina, repetindo gestos que impregnam e registam, na aparente regularidade inscrita no suporte, os desvios decorrentes das pulsões que foi experienciando durante o processo criativo e do grau de atenção ou do cansaço a que foi sendo sujeita. Neste ponto limite de abstração meditativa, o gesto, repetindo-se sempre igual, liberta-se do sujeito/médium que o executa e encontra um ambiente de abandono produtivo, no qual se enraíza um método e um estilo específicos.
Um segundo aspeto estrutural que merece ser realçado sobre estes desenhos, refere-se à leveza etérea que transmitem, contrastando com o esforço hercúleo da sua génese. São trabalhos monocromáticos, realizados a caneta sobre papel vegetal translúcido, desenhos quase imateriais, de uma depuração e economia de meios extremas que, em alguns casos, parecem refletir sobre a exaltação mais do que substancial e luminosa da invisibilidade primeva. Podemos ainda anotar, por um lado, a evidente empatia destes desenhos com o minimalismo e, por outro lado, considerar que a tendencial desmaterialização destes desenhos se concretiza em proveito da sua maior eficácia espiritual.
Nas três pequenas esculturas monocromáticas expostas – vermelha, azul e branca, respetivamente –, o processo construtivo obedece aos mesmos princípios libertadores de qualquer norma pré-concebida; camadas sucessivas de algodão embebido e pintado sobrepõem-se como sedimentos geomórficos a que o tempo – “o tempo, esse grande escultor” -, o tempo de secagem generosamente outorgará uma forma definitiva aleatória e irrepetível. Neste contexto, o artista assume, de novo uma função do Demiurgo, do Princípio organizador!
Marta Sampaio Soares, Escultura Azul, 2016, tinta sobre algodão, 22,5 x 29 x 24 cm