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Experiência cativante e de estranheza entre o ver e o ler

Convido vivamente a ver a exposição de Guy de Cointet na Culturgest sob a curadoria de Miguel Wandschneider e Eva Wittocx que abrange um trabalho nas artes visuais; mais conhecido pelos livros e sobretudo pela produção de peças teatrais do que pelo desenho.

A importância do trabalho deste artista francês reside quando Guy parte para os Estados Unidos em meados dos anos 60, primeiro em Nova Iorque em 1966 onde conheceu Larry Bell (jovem artista escultor) seguindo com ele para Los Angeles sendo seu assistente durante uns anos. Este nome permaneceu durante um longo período desconhecido do público até ao seu desaparecimento precoce; tendo sido, no entanto, admirado no final da década de 60 em círculos restritos do mundo da arte. Porém, nos últimos dez anos o seu trabalho foi redescoberto à escala internacional a partir de 2004 quando Marie de Brugerolle organiza a primeira retrospetiva em Genebra no MAMC; tornando-se referência no campo das artes e fonte de inspiração para um número de artistas.

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Nas artes plásticas, a sua obra balanceia-se em simultâneo entre diversos suportes privilegiando o texto e o desenho. Na presente mostra, encontramos pela primeira vez, um conjunto extenso de desenhos reunidos num mesmo espaço. São igualmente expostos de uma forma inédita os seus cadernos onde é desvendado de uma forma dinâmica, onde se pode ver/ler o conteúdo página por página exaustivamente. Encontram-se objetos escultóricos, sólidos de grande volumetria, de cores vivas e vibrantes, de caráter lúdico, que funcionam como personagens ganhando a sua autonomia própria enquanto obras de arte. Fizeram parte de elementos cenográficos nas suas peças teatrais; contudo tais adereços não se reduzem a essa condição. Os curadores tiveram dificuldade em expor esses objetos cénicos de palco porque foram dotados de um estatuto especial cuja primeira função terá sido de estarem vivos em palco.

Desenhos repletos de texto e textos invadidos de desenho.

A questão da dicotomia do ver/ler de Guy remete para a centralidade e o âmago do seu percurso onde a fascinação reside no poder da linguagem, como artista conceptual que é, fascinado pela linguagem, relaciona ou não na experiência entre palavras e imagens. Debruça-se sobre a relação complexa entre o ler/ver de uma forma inventiva explorando a técnica da escrita em espelho e da dupla inversão, sendo aliás ambidextro e dotado de uma profunda capacidade de reverter a orientação do texto, num autêntico contorcionismo visual de palavras comunicantes, numa linguagem codificada e cifrada de uma abstração assumida. Na maior parte das vezes, não é possível descodificar o texto, não é essa a intenção do autor; mas, somos tentados a fazer esse exercício de decifração. A vertente visual passa a tomar conta da situação ocupando um lugar privilegiado.

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Quando chegou aos EUA desconhecia a língua inglesa, atravessou um percurso difícil, quando a sua área de interesse era precisamente as técnicas de comunicação. Surge um filme sem som de Guy I Dream (old woman) que mostra em silêncio as diversas cenas de uma mulher de idade nos seus afazeres quotidianos, no exterior de sua casa em diferentes momentos do dia, demonstrando um fascínio pela cultura popular. Existe como uma tentativa de identificação entre a situação daquela figura e o próprio artista, não falando com ninguém, simplesmente acompanhada de si própria e ao mesmo tempo resignada à sua própria condição. É uma peça magistral de um enorme rigor formal tanto no plano plástico, como na relação que estabelece entre a estrutura da varanda da casa e os desenhos geométricos. Nas imagens denota-se o resultado de uma estranheza no facto de captar magistralmente a banalidade do quotidiano daquela mulher a estender a roupa e a dobrá-la com todo o cuidado, a regar as flores e a ler o jornal. Estranheza essa que tenta conciliar o aspeto familiar e o enigmático que surgem entrelaçados, fazendo parte de um dos traços da personalidade de Guy.

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O título da mostra é uma frase retirada de um dos seus desenhos que sintetiza o significado do mecanismo do seu trabalho. Quem escreveu isso? faz todo o sentido dado que a sua obra vive da constante apropriação de referências autorais. O curador utilizou o mesmo sentido de apropriação, num gesto enfático, exercício semelhante ao do criador quando respigou os textos para os seus desenhos. Registo de uma dupla apropriação: por um lado o artista e por outro o curador. Brugerolle define Guy assim: "Para compreender o trabalho deste artista, temos de nos libertar dos nossos hábitos e do conhecimento. Dado que os códigos comuns da linguagem estão distorcidos, ficamos inicialmente perturbados, e depois dá-se uma suspensão".

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