Fotografias: Nuno Gervásio.
“Uma criação é sempre um contrato com o tempo”
Cada vez mais se trabalha de uma forma global, transversal e expandida entre territórios. É por essa razão que, até 30 de abril, de forma natural, a Bienal BoCa conjuga artes performativas com artes plásticas.
A esta Bienal chegam criadores de vários pontos do mundo e apercebemos-nos que artistas russos trabalham questões muito semelhantes a artistas que estão na China ou em Nova Iorque. Vive-se numa era de globalização e expansão do conhecimento, da tecnologia, dos meios de comunicação. Muitos dos trabalhos apresentados relacionam-se com questões sociais e políticas, outros relacionam-se com a religião e criam a partir do sagrado. John Romão é o diretor artístico deste festival colocando artistas a apresentar uma nova visão do seu trabalho, como é o caso do espetáculo Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre de João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira que acontece já no dia 31 de março.
Há vários anos que o teu percurso tem sido pautado pelas artes performativas. Como te surgiu a ideia de criar uma bienal que junta as artes performativas com as artes plásticas?
Não consigo desvincular os meu papel de artista e neste caso de programador ou diretor artístico. Na verdade estão muito ligados porque esta ideia surgiu da minha experiência — ao longo de dez anos — de assistente de encenação e encenador. Tenho viajado muito e conhecido vários festivais, bienais e teatros com linhas programáticas muito diferentes. Senti que havia falta de algo que é no fundo o que nos move para a criação. Embora a minha formação seja as artes performativas, sou um grande consumidor de artes plásticas e artes visuais e fico um pouco perplexo com esta divisão constante entre os dois territórios artísticos. Os artistas já tratam as linguagens como um todo, eles próprios entram em territórios desconhecidos, usam outros media para construir a sua própria linguagem que é cada vez mais transversal e mais híbrida. Já não estamos em época de especialização e é cada vez mais importante a ideia de um território cruzado entre as várias expressões artísticas. Estou cansado de divisões e acho que a arte contemporânea tem essa função política de não propor coisas fechadas, tanto a nível de sentido como de formato. Na verdade vemos o mundo a caminhar numa direção contrária com a criação de políticas cada vez mais extremistas, democracias iliberais, ou seja, tudo tendo em vista o fechamento. A arte tem essa função política, mesmo sem querer, de expansão e abertura que promove um equilíbrio. Um exemplo é a artista Tania Bruguera que criou um movimento de emigração, um partido político e um conceito de arte útil — ela considera que a arte deve ser um utensílio de uso quotidiano no campo da política — que transforma os espetadores em cidadãos.
Da programação fazem parte várias performances criadas de raiz e artistas que vão trabalhar outros campos que não os habituais no seu corpo de trabalho. É o caso da realizadora Salomé Lamas que irá fazer uma criação de palco no Centro Cultural de Belém.
Durante dois anos estive em diálogo com vários artistas, muitos interessavam-me pela geração — semelhante à minha que sou de 1984 — que apesar de novos estão a criar uma maturidade à volta do seu trabalho e têm curiosidade de experimentar outras coisas. Tentei propor-lhes um formato ou território que ainda não tivesse sido explorado, mas ao mesmo tempo relacionado com o seu corpo de trabalho. Por exemplo o artista plástico João Pedro Vale experimentou imensos formatos e medias, da escultura, à cenografia, figurinos, filmes, instalações, performances e de repente o que faltava no seu percurso era a criação do seu próprio espetáculo. Decidi então perguntar ao João e ao Nuno Alexandre se gostariam de criar um espetáculo e assim se chegou à ideia de um circo: Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre. A Salomé Lamas apresenta a 12 e 13 de abril a sua primeira criação de palco. Ela estava a começar a trabalhar no filme Fatamorgana e pensou em criá-lo como um espetáculo teatral. A Ana Borralho e o João Galante apresentam no final de abril a performance/instalação Estrelas Cadentes. Nos últimos anos eles têm trabalhado com o público e desafiei-os a criar algo com os seus próprios corpos.
Como foi o teu processo de pesquisa na forma como foste colecionando artistas. Resulta das viagens que foste fazendo?
Tal como os artistas, trabalho desta forma muito expandida e a Internet ajuda imenso neste processo de pesquisa. Já trabalhei com vários dos artistas que vão estar presentes e outros só descobri há pouco tempo. Uma criação é sempre um contrato com o tempo. Quando decido fazer uma peça de teatro, tenho uma semana, três meses ou um ano para a fazer. Fazer uma programação é semelhante. Ao longo de dois anos de preparação tenho a intuição e sensibilidade de gerir o tempo e havia obviamente artistas que queria muito trazer noutro formato como é o caso do Rodrigo Garcia através de uma instalação e não através de uma peça de teatro, ou Romeo Castellucci — um artista com um percurso muito mais vasto do que conhecemos e que veio apenas três vezes a Portugal — que com uma intensa conotação plástica apresenta uma relação site specific com o espaço propondo uma relação mais próxima do espetador.
Assim, os grandes nomes dão uma outra visão do seu trabalho cruzando-se com artistas jovens, muitos deles a apresentar pela primeira vez em Portugal.
A minha preocupação foi sobretudo dar a conhecer artistas que considero muito interessantes nesta linha programática e cujo trabalho ainda não é conhecido em Portugal. Não me interessa replicar um formato ou trazer artistas que possam vir cá noutro contexto de programação. Esta bienal é também para mim uma reflexão sobre o que é programar algo temporário ao invés de algo em programação contínua como um teatro ou um museu. É esse caráter de exceção que é muito interessante na Bienal BoCa: os artistas que estão a trabalhar noutros territórios, instituições que estão a receber artistas que não correspondem exatamente à sua linha programática ou artistas novos e estrangeiros que apresentam pela primeira vez em Portugal.
A equipa Sub 21 é outra das áreas da Bienal em que vários jovens vão mostrando a sua visão criativa do que se vai passando na BoCa.
Sim, abrimos um open call a jovens dos 16 aos 21 anos que quisessem pertencer a esta equipa que decorre ao longo de três meses. Acompanhados por Sara Franqueira e Hugo Barata estes 12 jovens encontram-se todos os sábados para discutir, pensar e dar vida à a sua visão crítica e criativa da Bienal. O resultado é o blog Sub 21 onde vão publicando textos, vídeos, desenhos ou fotografias.
A secção musical, também ela focada em novos valores, está a cargo de Sérgio Hydalgo, o programador da ZDB.
Sim, inicialmente estivemos a detetar qual seria o território mais interessante pensando na música como objeto artístico e como área que dialoga com outros territórios. Foi assim que surgiu a ideia de trazer Yves Tumor e Cecilia Bengolea & Nigga Fox (dia 6 de abril no Lux) ou a Jenny Hval que fecha a Bienal com um concerto dia 30 de abril, também ele no Lux. Entre outros vamos também ter os artistas Van Eyres e Klein que atuam no dia 31 de março na ZDB.
Para além do Lux e da ZDB da programação transversal — desta vez programado por Nicolai Sarbib — também faz parte um after que acontece no dia 6 de abril no Eka Palace em Xabregas .
Sim, será com os Tropa Macaca, que trabalham entre as artes plásticas e a música. Vão fazer um concerto ao vivo e em seguida transformam-se em DJ’s. Esta ideia de fazer um after numa Bienal ou fazer eventos numa discoteca tem a ver com a reivindicação dos espaços que associamos apenas à diversão noturna. Há uma relação direta com a missão destes espaços que não se restringe apenas a entretenimento, mas sim a uma vertente cultural abrangendo o público da arte contemporânea.
Por último, sentes que criaste um monstro?
(pensativo) Sim, estou muito contente com este monstro (risos). Acho que é mesmo um monstro ao qual se reconhece uma forma diferente com esse lado monstruoso no sentido em que te desperta a curiosidade e te desperta um desejo de entrar dentro desta forma estranha.
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