Fotografias: Nuno Figueira.
Encenação de Natália Luíza. Em cena no Teatro Meridional até ao dia 2 de Agosto.
Uma viagem doce ao colo de um avô africano que conta histórias de baleias capitalistas
Podemos voltar às peças onde já fomos felizes? A equipa do Teatro Meridional acredita que sim e por isso decidiu revisitar a peça Mar Me Quer, adaptada de um conto do escritor moçambicano Mia Couto, cuja primeira encenação remonta a 2001. A encenadora Natália Luíza diz que são os mesmos actores e criadores, 14 anos depois, com mais "antigamentes". Faz todo o sentido a viagem de volta, numa história que mistura imaginários e procura fazer a ligação entre o mundo dos mortos e dos vivos, entre o passado e presente.
O mar é omnipresente no ambiente sonoro criado por Rodrigo Leão e quase nos vem amornar os pés em ondas suaves e baixinhas. Não vi a baleia “grandíssima” que apareceu na história contada pela personagem Zeca Perpétuo, o pescador velho assombrado pelas suas lembranças e interpretado por Daniel Martinho, mas acompanhei-o na dança em que ele imitou as graças físicas da bela Luarmina. Se no texto brilham como jóias (seria mais adequado dizer aqui, como pedrinhas na areia da praia) as palavras mágicas de Mia Couto, nascidas da mistura entre gramáticas e geografias, na representação não falta a música que habita o corpo dos actores e preenche os muitos silêncios desta gente do mar, vocacionada para risos fáceis e profundas meditações.
Caminham a dançar sobre o abismo, semelhantes a frágeis destroços de madeiras velhas e coloridas, gastos pelo sol, o sal e o medo da noite muito viva, habitada por espíritos benévolos mas zangados porque os vivos lhes prestam escasso tributo em galinhas e aguardente. Tudo isto é Moçambique? Talvez, mas então é um Moçambique imenso, diluído no oceano e transportado na boca de muitos peixes para ser ofertado ao mundo inteiro. Moçambique, na sua africanidade, representa uma terra mais fértil em lendas e histórias de que todos precisamos, talvez a sedenta Europa mais do que todos, ressequida por relatórios financeiros e onde o sonho e a fantasia estão sufocados por um pragmatismo estéril.
Esta peça diz-nos que não podemos expulsar o fantástico das nossas vidas nem desistir da partilha colectiva. Ao longo do espectáculo, vamos assistindo a esse debate entre os vivos – o casal Luarmina e Zeca – mediado pelos mortos, encarnados pelo espírito do avô Celestiano. Apesar do humor dos diálogos, com os dedos de Zeca sempre a procurarem a pele de Luarmina, é um caminho doloroso esse que percorre um corpo ao outro. Algures no tempo, eles perderam-se um do outro e será preciso reconstruir a ponte, a ligação à história e à memória. É o caminho de reconciliação, a busca do entendimento, do fio amoroso que torna a vida suportável e abre espaço para a redenção da morte.
Para Miguel Seabra, director artístico do Teatro Meridional, que neste espectáculo assina o desenho de luz, Zeca Perpétuo "cumpre o seu karma e fecha o ciclo da vida de uma forma harmoniosa. No final, não vai sozinho". Não o vemos, mas viaja ao colo do avô Celestiano, que baixou à praia para lhe recordar a necessidade do amor, entendido como a abertura do coração ao outro, à mulher, ao estrangeiro, ao invisível.
Numa leitura mais teatral, é uma viagem mais para dentro do ser humano e das suas psicologias e pluralidades. Mas, apesar da aparente candura que emerge no tom de fábula, a peça tem uma leitura mais para fora, ou seja, política. A amaragem ao outro, que vai e vem em tantas hesitações como o movimento das marés, é uma viagem "cada vez mais amedrontadora e conseguirmos reunir num mesmo espaço e inteligir em conjunto uma ficção torna-nos certamente mais empáticos e capazes de acção colectiva", segundo a encenadora Natália Luíza.
Só não se recomenda este espectáculo a quem não gostar de histórias, nem de música, nem de banhos de mar, nem de canoas a sulcar as ondas, nem de avistar baleias no horizonte.