Vera Mantero estudou ballet clássico até aos 18 anos, mas rapidamente iniciou estudos e percurso em dança contemporânea. Desde então tem aperfeiçoado o seu próprio estilo que é muito mais abrangente do que a disciplina da dança e passa por uma atitude performática que caracteriza todo o trabalho que tem desenvolvido nos últimos anos.
O espectáculo apresentado recentemente no Centro Cultural de Belém, divide-se em duas partes distintas. São dois solos de Vera Mantero, o primeiro baseado numa aula de Gilles Deleuze sobre Espinoza O que podemos dizer do Pierre? (2011) e a segunda parte Os Serrenhos do Caldeirão, exercícios em antropologia ficcional (2012) é um trabalho desenvolvido pela artista sobre a população da Serra do Caldeirão no Algarve, baseado nas pesquisas de Michel Giacometti.
O primeiro solo consiste num trabalho coreográfico sobre o som da aula de Deleuze. Sobre Deleuze, Mantero movimenta-se de forma arrítmica e por vezes espasmódica. Nunca temos a sensação de que os movimentos correspondem directamente ao som da voz nem ao que ele está a dizer. Mais tarde, na segunda parte do espectáculo, a artista falará de John Cage, mas podemos intuí-lo também em O que podemos dizer do Pierre? A disparidade criada pelos movimentos da artista sobre o som da voz francesa de Deleuze e as legendas em português projectadas num écran ao fundo do palco, causa uma sensação de estranheza onde procuramos, em vão, uma ligação ritmica e musical.
Os Serrenhos do Caldeirão, exercícios em antropologia ficcional parte, como o próprio título indica, de uma premissa antropólogica, mas é construído a partir do que parece ser uma espécie de road movie que Mantero fez na Serra do Caldeirão cruzado com a recolha imagética e sonora de Giacometti. Sobre estas imagens de pesquisa, a artista confessa-nos os seus pensamentos e apreensões relativamente à perda de uma “sabedoria ancestral” que nos ligava à natureza e a um viver mais visceral e autêntico. Pese embora algumas considerações de Mantero serem um pouco ingénuas ou até de algum deconhecimento que demonstra (como achar estranho que os trabalhadores rurais cantem enquanto trabalham), são questões profundamente pertinentes nos tempos que vivemos e transversais a diferentes disciplinas artísticas ou científicas.
Este projecto foi elaborado no âmbito de um evento sobre a desertificação da Serra do Caldeirão e remete-nos para a memória. A memória de uma ruralidade de um Portugal pré-revolução, mas é também da memória do corpo de que fala Mantero. A memória que fica nos gestos, na voz (e que bem que ela canta) e numa saudade que não é nossa mas que é tão portuguesa. É uma peça que desperta os afectos e que revela Vera Mantero como uma artista total, que para além de dançar, escreve e canta numa atitude performativa que se adivinha em expansão e aprofundamento. Uma artista que mais do que uma atitude performática, tem uma atitude filosófica e interrogadora que questiona directamente o público que assiste, confrontando-o e sugerindo-lhe que pense também.