PALCOS

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Problemas de expressão ou como só é surdo quem não vê.

Domingo não é dia para pensar. Já basta o turbilhão de sinapses que nos outros seis dias da semana chocalham na massa cinzenta. Aos domingos faço reboot, reset, refresh. Respiro. E foi neste registo – o de uma folha de papel em branco – que rumei ao Teatro Maria Matos para assistir à terceira e última exibição do espectáculo de dança performativa de Alain Platel, Tauberbach.

Apesar do formato “folha de papel em branco”, sabia ao que ia. Fiz o trabalho de casa e dias antes vi o documentário Estamira (2004) de Marcos Prado e vasculhei no ciber espaço por pedaços do projecto de video da autoria de Artur Żmijewski, Tauber Bach (Bach surdo). Ambos foram a fonte de inspiração para esta experiência comunicativa de “dança bastarda”. E nessa folha de papel em branco domingueira, rapidamente começaram a desenhar-se sensações. Mas antes deixem-me falar um pouco de Estamira, essa senhora brasileira que vivia tanto neste mundo dito “real” como num mundo só dela. Estamira Gomes de Sousa, falecida em 2011, era esquizofrénica e fazia o seu dia-a-dia no aterro sanitário do Jardim Gramacho, perto do Rio de Janeiro. Passava os dias a remexer em lixo. Era dali que retirava o sustento e a alegria plácida de quem vive a sobreviver, nos despojos do consumismo e a soberania do desperdício. A sua personalidade, tão carismática quanto perturbada, ganhava corpo numa linguagem muito própria, com pontos de vista bastante vincados e opinativos acerca de religião, a sociedade e a dicotomia da individualidade: a carne em contraponto com a essência que nos define.

O pano sobe e num cenário atolado de roupa, largadas no chão que nem dia de saldos em ácidos numa dessas lojas que enchem de estilo guarda-roupas de miúdas neste lado do Mundo e sugam a infância de crianças para os lados do Sol nascente, a actriz Elsie de Brauw encarnou essa presença de tal forma, proferindo palavras semi-reconhecíveis, surdas de sentido e carregadas com aquela necessidade revoltosa de ser OUVIDA. Os zumbidos de moscas em som de fundo e os corpos dos outros elementos do elenco, despojados e movendo-se organicamente naquele espaço. O potencial sugestivo da música de Bach, a sexualidade genérica, livre de pudor e, na minha perspectiva, criando um contraponto com a casta dos valores deste universo de consumo exarcebado. Todo este organismo estimulou o público de diversas maneiras: houve elementos de comédia – pelo menos para a maioria da audiência – com jogos de coreografias e sons. Nesta folha de papel em branco, os risos não me saíram. A comédia visual levou-me para o mundo de Estamira, com as diferentes vozes que toda aquela cabeça carregava. As dela e as do tempo. E para mim, este tauberbach foi um shot de tequila sináptico que me viciou. Embalou o peso de um caos ensurdecedor, tão belo e intenso que me rabiscou pensamentos. Mesmo a um Domingo.

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