BOA-VIDA

  • none
  • none

Vivemos tempos bizarros. O valor dos objectos já não é medido pela sua avaliação monetária ou nem mesmo pela função que podem realizar ou capacidades de que dispõem mas sim pelo seu aspecto, pelo que dizem acerca de nós e onde nos colocam socialmente. Pior ainda, a aura do objecto, do seu fabricante ou da sua época é confundida com o funcionamento final e real do mesmo.

O zeitgeist social não é um de mediania, é imperativo sobressair com um estilo de vida levemente rebelde e deliciosamente alternativo. As bicicletas revelaram ser o acessório de moda ideal para as mais recentes tribos urbanas que não se contentam em pedalar de A a B tranquila e discretamente. A bicicleta é forçada a ser não um veículo mas um marcador de estilo de vida e um comprovativo de excelência social; todos os equipamentos devem cumprir regras exigentes de estilo e "look", e tudo deve ser documentado nas redes sociais.

Os impressionáveis e os sedentos de integração, quando expostos a estas singularidades muito visíveis da cena da bicicleta, tomam-nas como realidade e totalidade; é gerada uma imagem distorcida e dolorosamente limitada das vertentes e modos de estar do ciclismo, que se propaga e salienta em ciclo automático. O fenómeno é semelhante à consanguinidade observada num pequeno grupo fechado de animais que se reproduz sem diversidade genética, dando origem a uma acentuação pronunciada de certas características e mutações que nunca se revelariam num grupo aberto.

Uma dessas mutações é a idolatração da forma acima de tudo, algo que entra em conflito com a própria essência do velocípede. A bicicleta é uma máquina e, como tal, tem que funcionar bem e ser prática. As verdadeiras bicicletas são desenhadas para cumprir uma função, não para terem um determinado aspecto. Considero esta declaração auto-evidente e incontornável.

A cultura do ciclismo, nas numerosas vertentes modernas e clássicas, está a ser retalhada e roubada das suas partes mais interessantes que são amalgamadas numa mistela disforme e desvirtuada para benefício estético no Instagram. Muitas dessas referências repescadas e agora deificadas são-no apenas pelo seu aspecto vintage, sem que haja uma plena compreensão da razão e da mecânica que as gerou. O corolário desta apropriação desinformada leva-nos a uma aridez criativa que fica escondida por trás de uma comunidade aparentemente vibrante e dinâmica: pouco do que se cria actualmente é original ou irá adicionar algo de significativo à cultura global da bicicleta.

Tantas características de design clássico que estimulam as glândulas salivares dos proto-ciclistas urbanos não nasceram de esforços estéticos mas antes de uma busca intensa por desempenho e funcionalidade e como resposta a um problema mecânico ou técnico. Não foi feito para ser bonito, foi feito para não partir – o bonito é inerente. Paradoxo: as bicicletas de estrada antigas, tão cobiçadas actualmente como bilhete instantâneo para um degrau superior na cadeia alimentar do ciclismo urbano, na realidade primam por mudanças pesadas, ergonomia atroz, travões incompetentes e rolamentos gastos. Expressão genuína de rebeldia e originalidade ou ilusão colectiva alimentada a marketing e desejo de pertença tribal?

Independentemente destas considerações e da minha condenação da idolatração da ferramenta bicicleta, obrigo-me a reconhecer que qualquer interesse no ciclismo é bom. A bicicleta é universal e democrática, podendo ser utilizada de inúmeros modos, todos eles válidos. Pelo menos foi isto o que eu li num blogue Japonês de fixed gear e eles tinham montes de fotos espectaculares no Instagram por isso devem saber do que falam.

Boa-vida

Newsletter

Subscreva-me para o mantermos actualizado: