Fotografias: Matías Laufer.
Uma cidade branca, um bar britânico e um relógio desconcertante
Tem um sabor a cais sem água à vista, este lugar – José Cardoso-Pires, in Lisboa, Livro de Bordo.
Um barco atraca em Lisboa. Paul, um dos tripulantes decide que não regressará. Prefere ficar a deambular por uma cidade antiga, maltratada, pouco estimada, captando imagens em super-8 para enviar para casa, em jeito de diário visual. Ao procurar alojamento, entra no British Bar e trava conhecimento com Rosa, a empregada.
Estávamos em 1983, o filme era A Cidade Branca, de Alan Tanner. O forasteiro era o actor Bruno Ganz e a empregada do bar (que na trama também funciona como recepção de hotel) era a actriz Teresa Madruga. O diálogo inicial gira em torno de um relógio de parede, que no ver de Paul parece funcionar ao contrário. Para Rosa, ele funciona no sentido certo – o mundo é que gira ao contrário.
Fotogramas de A Cidade Branca, de Alan Tanner
Eis o célebre relógio do British Bar, em que os ponteiros funcionam no sentido da rotação da Terra… mas marcando o tempo com uma pontualidade britânica. Um dos objectos iconográficos de Lisboa, aqui com direito a protagonismo num filme que adjectivou Lisboa como uma cidade branca devido à sua luz vibrante e crua – branca.
José Cardoso-Pires, em Lisboa, Livro de Bordo, tece umas quantas críticas ao filme, não se revendo numa cidade toda pintada de sujo. Chama-lhe “filme de cais de insónia”, em que o realizador “provavelmente viu o relógio do British Bar como uma metáfora do saudosismo lusitano”.
O escritor era frequentador habitual do British (bem como do Bar Americano, do outro lado da rua) e, já se sabe, os frequentadores habituais têm sempre uma visão dos seus espaços de eleição que implica uma certa posse, mesmo que imaterial. “Para os clientes habituais, aquela curiosidade não passa de um gracejo de boas-vindas.” Referia-se ao relógio, é claro.
Desde 1919 que o bar ostenta este nome, mas já existia nos finais do século XIX, com a designação “Taverna Inglesa”. O Cais do Sodré era por excelência a área comercial e de serviços ligada à navegação marítima, com firmas de transitários, muitas delas inglesas, o que garantia uma clientela assídua e regular. Fernando Pessoa conhecia-o (trabalhava próximo) e os pintores Carlos Botelho e Bernardo Marques também mediram muitas vezes o tempo por este relógio digno de Dalí.
Mas não se julgue estarmos num sítio pretensioso ou descaracterizado pela fama, com placas evocativas ou estátuas à porta. É um espaço com 26 lugares sentados, familiar, cosy, verdadeiramente british. Ponto de encontro, mas também lugar de passagem, é um sítio ideal para quem gosta de uma boa conversa. E é um bar para fumadores…
Nota final: se não quiserem parecer muito outsiders, peçam ginger-beer à pressão ou um gin fizz. Não ganharão imediatamente o estatuto de frequentador habitual, mas o barman perceberá que, ao menos, estudaram a lição em casa.
Rua Bernardino Costa, n.º 52-54 (Cais do Sodré), Lisboa
Horário: de seg. a qua. – das 10:00 às 02:00; de qui. a sáb. – das 10:00 às 04:00.
Fumadores: sim.
Wi-fi: sim.