Ser Feliz num Hotel em Moncarapacho
O Vila Monte Farm House, em Moncarapacho, respira Algarve. Percorremos a subida que conduz ao lobby e estamos em férias da pátria, como escreveu Miguel Torga: “Passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração”. No Algarve de Torga, tudo é “fácil, belo e primaveril”. E no Vila Monte também. A magia bebe-se em várias fontes mas talvez o feitiço maior venha do barrocal, aquele pedaço de terra entre o mar e a serra, que inebria com os seus perfumes e espécies vegetais. É possível que a alegria brote do coberto de figueiras, alfarrobeiras, amendoeiras, oliveiras e azinheiras que prolongam a suave serra algarvia nos jardins do hotel. Mas também pode estar na visão do mar avistado da grande varanda dos pequenos almoços, uma faixa azul e verde donde emana toda a luz da manhã e do poente.
Os banhos de mar e sol estão à nossa espera na ilha da Culatra, depois de atravessada a ria Formosa numa curta viagem de barco que parte da Fuzeta (o transfer é gratuito para os hóspedes, e a cortesia inclui ainda chapéu de sol, toalhas e água à chegada ao areal).
É verdade que praias há muitas em Portugal, mas belas como esta, bordejadas por um trilho de búzios enterrados na areia branca e fina, lambidas amorosamente pela ria de um lado e pelo oceano Atlântico do outro, aqui domesticado pela benévola influência do primo mar Mediterrânico, são um património raro, um antídoto precioso contra as gélidas ventanias, as rudes ondas, um pedaço do paraíso com as cores dos inventados trópicos portugueses.
Os caminhos do Vila Monte conduzem a lugares de felicidade: a pouca distância está situada a olaria Moncarapachense, uma das poucas que resiste e bem numa terra que sempre foi pródiga em artesãos. Encontramos muitos utensílios, dos vasos aos candeeiros, nos quartos e espaços exteriores.
O projecto do arquitecto Jorge Guimarães apostou na recuperação do que era endógeno e rústico e fez da arquitectura algarvia a rainha do espaço: sentimos essa devoção na brancura dos muros caiados e nas alvenarias, nas madeiras das reixas e das treliças que decoram as janelas e varandas, na geometria das platibandas, dos terraços e das açoteias.
O desenho de interiores, concebido por Vera Iachia, prolongou a rusticidade e a informalidade, através de uma paleta de cores suaves, tecidos tradicionais, peças oriundas do artesanato local como as empreitas (entrançados de palma), a cestaria, as enfusas e outros cântaros e a cortiça. O arranjo paisagístico, da autoria de Teresa Beirão, potenciou no exterior os sabores e os cheiros do sul: há uma horta onde o chefe e os seus assistentes vão apanhar os legumes para as saladas e um jardim de ervas aromáticas e plantas medicinais usadas na preparação dos cocktails, dos chás e dos sumos detox servidos no bar e restaurante.
Atravessamos os canteiros num jogo de adivinhação: há cheiros fáceis de reconhecer, como o tomilho, a hortelã, a salva, os orégãos, a segurelha e o manjericão; plantas que todos conhecemos, como a erva príncipe e a lúcia-lima; mas também há desafios mais difíceis, como o aneto ou endro, a nêveda (ou erva das azeitonas, endémica na região) e o cantinho indiano dos picantes: caril, mostarda, malagueta.
A comida servida no restaurante A Terra honra a tradição gastronómica algarvia e quase faz crescer mais jardim e horta no prato. As propostas são saudáveis, saborosas, simples, animadas pelo espírito de uma avó cheia de segredos (um deles é o forno a lenha e outro é o “josper grill”, uma combinação inovadora de grelha e forno onde se grelham e assam os alimentos), hospitalidade e confiança absoluta na qualidade dos produtos locais.
Não há nada que possa igualar a frescura do peixe vendido no mercado de Olhão e só talvez uma viagem até ao oriente garantisse alguma rivalidade com o sabor dos figos, das amêndoas e das alfarrobas presentes em muitas das propostas. Quanto ao azeite, é impossível vencer a qualidade do Monterosa. Os viveiros de plantas ornamentais e o olival são vizinhos do Vila Monte e os hóspedes são convidados a fazer uma visita guiada pelas oliveiras, algumas centenárias, que garantiram à marca o título de “melhor azeite do mundo”, conquistado em 2015.
Nunca tinha bebido shots de azeite virgem extra mas é o que acontece durante a prova. A marca produz 4 azeites monovarietais (cobrançosa, maçanilha, picual e verdeal) e todos passam com distinção num teste que não admite erros: é preciso sentir com intensidades várias o amargo, o frutado e o picante e não pode haver qualquer defeito.
Foi uma boa ideia ter devolvido a bicicleta ao hotel (são grátis para os hóspedes e estão equipadas com um lindo cesto campestre à frente) antes do jantar em Olhão, apesar de ser tão bom pedalar na alameda de palmeiras da quinta. O regresso não teria sido fácil de conjugar com o esforço físico mas felizmente antecipei que comer demais pudesse afectar a qualidade do ciclismo. Olhão é uma festa para os fãs de marisco. Entre os crustáceos – camarões, navalheiras, lagostas, lagostins, cavacos, percebes, santolas – e os bivalves – amêijoas, berbigão, conquilhas, ostras, vieiras, burriés, búzios, lamejinhas – há uma lista interminável de opções servidas na rua, em esplanadas informais, com os mariscos vivos ao lado e cozinhadas pela família dos pescadores.
Foi já deitada na cama king size, gozando do conforto do colchão de molas ensacadas propício a uma meditação perspicaz, que encontrei por fim a fonte principal da felicidade que rodeia o Vila Monte: não está nas duas piscinas onde podemos ler e refrescar, secando depois na sombra de uma borracheira ou de um sobreiro; não está no coaxar dos sapos dos lagos que alimentam a rega da propriedade; não está nos trilhos empedrados que levam a estradas rurais e casas de campo que fazem sonhar com reformas antecipadas; não está no lobby marcado pela grande lareira vertical onde no inverno vai apetecer ficar mais tempo gozando o calor do fogo; não está na sensação de paz que se vive caminhando à noite pelas veredas alumiadas pelas estrelas e por dezenas de pontos de luz coados por lanternas de cerâmica. Tudo isso é um contributo importante mas não lhe chamaria sequer boho-chic, o palavrão inventado pelos hoteleiros para resumir os objectivos de sustentabilidade, inovação e conforto que guia o espírito do Vila Monte Farm House.
Tratando-se de um sentimento complexo, abstracto embora palpável, etéreo embora humano, musical embora denso, tenho de recorrer a uma poetisa para o definir. Florbela Espanca viveu um ano de tédio e doença em Quelfes, ao lado de Moncarapacho (a casa ainda lá está). Mas, mesmo ela, que detestava o cheiro fétido da ria e “tinha ódio ao Algarve” porque “o sol nascia ali com demasiada alegria”, deixou-se tocar pela beleza de um final de tarde no campo e dedicou-lhe um poema: “A tarde é de oiro rútilo: esbraseia/ O horizonte: um cacto purpurino./ E a vaga esbelta que palpita e ondeia,/ Com uma frágil graça de menino./ Que linda tarde aberta sobre o mar!/ Vai deitando do céu molhos de rosas/ Que Apolo se entretém a desfolhar..."