Dentes afiados, sangue fresco à refeição, salas sombrias, tez pálida e fobias a alhos. Tudo indica que aí vem uma história da Transilvânia protagonizada por Bela Lugosi. Mas não. Não vamos falar de caça-pescoços nem de maldições.
Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton) não são o Adão e a Eva do Jardim do Éden, mas podiam ser. Vivem na Terra, que também ela está cheia de tentações e pecados, e são eternos, não pela mitologia, mas pela sua condição imortal. São dois vampiros que tiveram a sorte (ou o azar) de sobreviver à Idade Média, à Peste Negra e às duas Grandes Guerras. Privaram com Tesla, Lord Byron, Franz Kafka, Iggy Pop, e chegaram intactos aos nossos tempos modernos, do iPhone e dos downloads.
Einstein, que também se cruzou com eles algures no tempo, defendia a Teoria da Acção Fantasmagórica à distância, também chamada Entrelaçamento Quântico, que explica a bonita ligação (tão bonita que é quase poética) entre duas ou mais partículas quânticas. Sendo que estas podem entrelaçar-se de tal forma que o que acontecer com uma, se reflectirá instantaneamente na outra, ainda que posicionadas em extremos opostos da galáxia.
Porém, não precisávamos de ir tão longe, pois é apenas um oceano que separa (fisicamente) Adam e Eve. Ele mora em Detroit. A mesma Detroit que viu crescer o Jack White dos White Stripes, e cuja primeira casa (a verdadeira) está numa rua muito próxima do cubículo escuro onde habita Adam, que se dedica inteiramente a gravar white labels, preservando o anonimato. Colecciona guitarras eléctricas dos anos 60, foi autor de uma das obras-primas de Schubert, aprendeu violino, viu tocar Eddie Cochran ao vivo, nos anos 50, e de vez em quando dá uns toques no seu alaúde que provavelmente lhe foi trazido de Tânger, cidade que a sua amada Eve escolheu para se aposentar.
Ela escolheu as ruas estreitas e os aromas exóticos de Marrocos, em vez da melancolia americana, sem deixar de se render à tecnologia recente que utiliza para comunicar com o marido. Deita-se com os livros que lê sofregamente e tem como fiel amigo o poeta isabelino Christopher Marlowe (John Hurt). Sim esse mesmo! Aquele que se diz ter sido o verdadeiro autor de Hamlet, de Shakespeare.
Mas entre eles há contrastes drásticos que os aproximam, mais fortes que a distância e o meio século de idade que os separa. Contrastes estes que se denotam logo pela cor dos cabelos. Ele tem-nos negros, como a sua roupa. É fanático pelo rock experimental, é depressivo, quase suicida, e vive desencantado com o mundo presente. Ela tem cabelos louros luminosos, trajes claros, é optimista, transmite uma paz difícil de decifrar, abraça a eternidade e as novas tendências, e dança suavemente ao som dos clássicos de Motown e Stax.
Mas eis que chega Ava (Mia Wasikowska) para destabilizar a rotina tranquila e melancólica do casal, que entretanto se havia encontrado em Detroit. Insolente, impulsiva e insubmissa, chega sem pedir licença, ao contrário do que faz um vampiro que se preze. A irmã de Eve, apenas tem em comum com ela o sangue lhes corre nas veias e aquele que bebem. Este último, era-lhes vendido por médicos corruptos e era já bastante raro saborear um em que se encontrasse a qualidade e a pureza de outrora. O mesmo acontecia com a sociedade, que começa a estar contaminada e a ser “imprópia para consumo”. É desta decadência que nos fala Jim Jarmush: do surgimento de uma “sociedade zombie”, da angústia em observar a estupidificação das almas e da fome cultural que se sofre hoje em dia.
Only lovers left alive é um hino ao romantismo e à eternidade, cravejado de sinais dos desencantados anos 80, que aponta o dedo a dependências que aqui assumem uma necessidade vital de alimento intelectual. Há, no entanto, um músculo que ainda bombeia os corações mais frios: a música à volta da qual o filme se sintoniza. Com uma banda sonora sombria, que vive da noite, sem pressas, feita de lamentos clássicos onde se abrem frestas de luz do electric vintage e ornamentada com sonoridades da world music marroquina. Interpretada pelos Squrl, a banda do próprio realizador, toda a musicalidade está muito bem afinada com os planos melancólicos, as passagens de câmara lenta, a assombrosa prestação de Tilda Swinton e as referências a personagens soterradas que vão preenchendo o vazio de um presente onde “já não existem heróis”, como lamenta Adam ao longo de todo filme.