Fotografias: Ricardo Dias.
Charlie Hebdo, Paris, Orlando, Bruxelas, Istambul, Bagdade, Nice.
O racismo, a homofobia, a discriminação, a misoginia.
Travamos uma luta constante por uma sociedade sem contrastes. Desde sempre travámos. E quantas vezes a música não falou por nós, não fosse ela uma arma.
O folk dos 70, o punk nos 80, nos 90 a eletrónica, os 00’s que da pop saltaram para o hip hop que rezamos hoje em dia.
Foi o que aconteceu nesta edição do Super Bock Super Rock: contou-se e cantou-se história.
Vamos viver com a memória de ter estado ali, estádio cheio no Meo Arena, no concerto apoteótico de Kendrick Lamar, aquele puto que veio de Compton.
A verdade é que, no momento em que vivemos, ele é o melhor em campo, e não só.
Falamos muito além da sua performance intocável: o flow sem falhas, uma banda que bem soube alicerçar o concerto, a proximidade com o público que o admira e o selo de qualidade musical inerente a tudo aquilo que faz. Aprendeu com os melhores e honrou-lhes o legado neste concerto feito de temas embebidos em soul, funk e jazz, por influência de George Clinton, a mão de Kamasi Washington, até ao hip hop mais oldschool dos De La Soul que haviam tocado no mesmo palco minutos antes.
Começámos a saltar com Levitate, passámos de m.A.A.d city para Swimming Pools, a coroação de King Kunta e acabámos bem com Alright.
Este desfecho pode ser o início de algo novo – não foi por acaso que os manifestantes da cidade de Cleveland, cantaram este “hino” perante as forças policiais, em Março deste ano.
Naquela sala, vimos gerações inspiradas por alguém que as representa. Alguém que sabe falar de discriminação mas que também nos sabe tranquilizar ao garantir que vai ficar tudo bem, que vamos construir um mundo mais justo.
É com esta esperança que também saímos do concerto de Massive Attack, doridos com o murro no estômago que nos deram, mas de peito cheio com a mensagem que nos passaram, no segundo dia do festival.
A banda britânica relembrou-nos que o mundo é um lugar cinzento, logo desde o início do espetáculo, ao som de United Snakes e com bandeiras sem cor, como plano de fundo.
Os Massive Attack e a sua maturidade em palco conseguem hipnotizar-nos bem acompanhados pelo trio Young Fathers. Eles são uma espécie de metamorfose onde se cruza o passado, o futuro, e o tempo que os torna melhores, à medida que passa.
Tocaram quase por completo o EP do seu regresso, Ritual Spirit. E sem sombra de dúvida, que chegaram a nós numa dimensão quase espiritual.
Aquilo que eles fazem é completamente abstrato, sente-se para além do corpo – texturas, frequências do trip hop tribal, sons etéreos, vozes intensas e batidas muito densas são o cocktail ao qual se junta um sequência de visuais que nos abriram os olhos para aquilo que tentamos esquecer todos os dias. Mais uma vez as questões deste mundo estranho: o terrorismo incompreensível, a falta de honestidade política, ou a futilidade que alimenta a nossa sociedade. Ouvimos Inertia Creeps, Take You There e vimos projetados os olhos de Donald Trump e a cara de Obama, lemos os títulos dos tablóides, o ópio do povo que anda formatado. Também vimos no ecrã códigos binários e questões que impomos a nós próprios todos os dias: How do I feel better?
A resposta surge no final do concerto ao som dos clássicos Safe From Harm e Unfinished Sympathy, cantados por Deborah Miller, ilustrados com retratos de vários cidadãos refugiados e onde se lê em letras garrafais “ESTAMOS JUNTOS”.
Levamos na bagagem desta edição do SBSR, uma mala cheia de música que mexe connosco todos os dias e talvez um pouco mais de fé no que está para vir.