MÚSICA

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Fotografia: Fundação Calouste Gulbenkian.

A temporada do ciclo das Músicas do Mundo da Fundação Calouste Gulbenkian tem o seu início amanhã com o concerto – Noite Mediterrânica - Projeto Chemirani. Oportunidade para entrevistar Risto Nieminen, Diretor do Serviço de Música, e conhecer não só o programa em maior detalhe, mas também a pertinência do mesmo dentro da programação anual da Fundação. Mergulhar num universo que ultrapassa os limites musicais, dando-nos a conhecer uma realidade cultural, social e política que muitas vezes enredados em exercícios de hermetismo eurocêntrico tendemos a ignorar.

Qual a necessidade de criar na programação regular da Fundação Calouste Gulbenkian um ciclo dedicado ao que se costuma designar como Músicas do Mundo?

É verdade que até há seis, sete anos o Serviço de Música da Gulbenkian apresentou principalmente só música erudita/clássica, mas há uns anos achámos que seria bom alargar um pouco a perspetiva do que fazemos, e sobretudo quando eu vim de Helsínquia e quando dirigi o Festival em Helsínquia e lá fizemos bastantes concertos relacionados com as Músicas do Mundo. Ao mesmo tempo, eu vi que em Lisboa, havia concertos às vezes, mas não verdadeiramente um ciclo de Músicas do Mundo. Por ser uma área bastante vasta, Músicas do Mundo não vai dizer muito, quer dizer está lá tudo incluído, mas que entendemos como Músicas do Mundo são músicas das outras culturas diferentes da nossa. Falei com os meus colegas e achámos que podíamos experimentar, sendo que desde o início tivemos um público bastante interessante e decidimos continuar.

Naturalmente há artistas que consideramos no contexto de Músicas do Mundo que tocam em outros festivais ou em Sines, que é um festival de primeiro nível, mas em Lisboa, em salas de concerto não há uma continuidade desejável, há bastante poucos. Ao mesmo tempo, eu considero que Portugal é um país com enormes potencialidades para apresentar este tipo de trocas interculturais, por causa da sua história, que tem contactos com todas as partes do mundo e também porque vocês estão habituados não só à música, mas à literatura, às artes plásticas do mundo inteiro. Então, faz parte da nossa programação e achamos que é importante e interessante sermos abertos na nossa escolha. No âmbito das Músicas do Mundo pode-se ser mais restrito e considerar-se somente como música, que podemos dizer erudita na sua área, por exemplo há música árabe que muitas vezes é música erudita ou senão pode ser religiosa ou pode ser, como acontece com muitos dos músicos sul americanos que nos visitam, mais popular. Nós não queremos limitar, o primeiro critério é que cada temporada apresente uma variedade de culturas diferentes e depois que seja artisticamente do mais alto nível possível. Se é música popular, erudita ou religiosa não faz diferença para nós, é bom haver uma panóplia o mais vasta possível.

Não teria sido mais "fácil" optar por um modelo que já existe na própria Fundação, ligado ao jazz como é o Jazz em Agosto? Ou se quisermos colocar a questão de outra forma, porquê a necessidade em disseminar os concertos pela programação ao longo do ano?

Poderiam ser ambos, poderia ser a programação durante a temporada e poderia ser um Festival durante o Verão ao ar livre. Talvez por causas históricas e por costume optámos por fazer uma temporada. Eu acho que no futuro não é impossível haver um mini Festival dentro da temporada com um objeto determinado, pode ser um país ou outra coisa.

Para lá do critério musical de que falou, às Músicas do Mundo associam-se-lhe uma certa ideia de tolerância, de sã convivência entre as culturas. Está subjacente à escolha de cada projeto a transmissão da mensagem que veiculam?

Programar este tipo de música é um ato político, pode-se dizer assim. Estes últimos anos convidámos um grupo da Ucrânia e isto quer dizer alguma coisa. Convidámos músicos da Síria, Irão e África, ou por exemplo a Rokia Traoré, do Mali. Os músicos, eles próprios não são demagógicos e falam o que pensam sobre determinado assunto. Isto é uma forma bastante interessante de dar voz não só para a música, mas para o que está por detrás da música, na cultura. Naturalmente não podemos ter uma posição política nossa e decidir quem é mau e quem é bom, mas como é prática na Fundação damos voz às pessoas e aos artistas que têm alguma coisa a dizer. Também há projetos que reúnem músicos de países em conflito, por exemplo o Jordi Savall traz agrupamentos que têm músicos gregos, turcos e sírios. Esta é uma forma, no meu entender, de promover a tolerância e aceitação de que somos diferentes e que é importante trabalhar juntos e pacificamente. A música permite, porque não está dependente de uma língua, não há barreiras linguísticas muitas vezes, demonstrar que a harmonia pode existir no mundo.

Partindo de um nome que já referiu – Rokia Traoré – e conhecedores da discriminação sexual, que ela, em particular, e as mulheres, em geral, sofrem no seu país de origem (Mali), não teria sido uma oportunidade aproveitar a vinda destes músicos para organizar conferências paralelas para dar a conhecer a situação de cada país?

Às vezes organizamos esse tipo de atividades, é verdade que não o fizemos com a Rokia, mas agora no dia 01 de Dezembro com Angélique Kidjo, do Benim, que tem uma forte mensagem no mesmo sentido ainda não sei se ela terá tempo para fazer isto, mas se for possível faremos, sobretudo, numa Fundação como a Gulbenkian que não tem só música, mas que tem outras vertentes. Muitas vezes depende da disponibilidade temporal do artista. Antes do concerto os músicos querem concentrar-se e temos a experiência que o público não fica muito facilmente após o concerto. Por um lado, há este conjunto de questões práticas, por outro lado, e da nossa parte, nós próprios temos tantos concertos que cada vez temos menos tempo.

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Angélique Kidjo

Desde a primeira edição até agora o modelo inerente à programação sofreu muitas variações?

Não há uma decisão consciente de mudar alguma coisa. Pretendemos apresentar uma variedade de culturas e estilos, e como já disse, é evidente que todos os programadores querem que artisticamente o nível seja o mais alto possível, mas depende um pouco como se constrói um ciclo deste tipo, depende da disponibilidade dos artistas e dos projetos, mas é verdade que não temos um número fixo de concertos, que andam à volta de oito/dez concertos por temporada e depois pode ser sul americano, ou outras vezes mais do médio oriente, mas principalmente queremos ficar bastante abertos e não fechar nenhuma porta a artistas que têm disponibilidade e vontade de vir.

A temporada deste ano terá início com o concerto Noite Mediterrânica de Jean-Guihen Queyras. Ainda se pode acreditar no Mediterrâneo como a bacia dos fundamentos civilizacionais ocidentais e orientais?

O mediterrâneo, no meu entendimento, tem mais e mais importância hoje em dia; na comunicação entre as culturas. Este é um projeto especial, digamos assim, dentro do ciclo das Músicas do Mundo, porque um dos quatro intervenientes não vem das Música do Mundo, mas da Música Erudita, o Jean-Guihen Queyras, o violoncelista, que já teve em residência connosco há alguns anos e é um músico que eu conheço há muito tempo. Penso que é um dos mais sublimes a nível técnico e que é musicalmente um dos mais abertos que conheço. Faz música clássica, fez muita música contemporânea. Quando pela primeira vez o conheci era especializado em música contemporânea e membro do quarteto de cordas. Este projeto é inédito para ele, uma vez que se vai reunir com músicos do médio oriente. No concerto ele integra, também, elementos da música contemporânea. Acho que é muito interessante.

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Jean-Guihen Queyras

Percorrendo o programa sem qualquer ordem, durante o ciclo haverá o concerto de Angélique Kidjo. Talvez por desconhecimento da minha parte associo-a muita à música dita pop. É essa intenção quando se convidam este tipo de músicos, abrir ainda mais os limites?

Sim, mas o mesmo já aconteceu com Amadou & Mariam ou mesmo com Rokia Traoré, que têm muitos projetos diferentes, alguns na área do rock. Às vezes pode-se aproximar mais da música erudita ou da música clássica, mas às vezes é pop, mas para mim não tem importância no sentido que se reúnem as outras condições de que já falámos.

Outro concerto que suscita alguma curiosidade é o do António Zambujo a cantar Chico Buarque.

O Zambujo veio pela primeira vez, ao nosso ciclo Músicas do Mundo, sensivelmente há quatro, cinco anos quando era mais conhecido na altura em França e talvez noutros países que em Portugal. Em Portugal, penso, foi considerado como não verdadeiramente do fado e foi um pouco difícil catalogá-lo. Programámos um concerto que foi um sucesso e que ele deveria repetir e organizámos novo concerto no dia a seguir que também esgotou. Ele tem feito concertos em salas maiores como o Coliseu de Lisboa, onde pode ter cinco dias consecutivos de concerto. Este é um projeto especial. Ele mantêm relações muito próximas com o Brasil e com músicos brasileiros, a música brasileira sente-se na sua interpretação. Tive conhecimento que o António Zambujo estava a fazer um disco no Brasil com música do Chico Buarque, perguntei-lhe se estaria interessado para apresentá-lo ao vivo e ele aceitou. Do que tenho conhecimento este será o primeiro concerto público com este reportório, penso que o disco irá sair antes do concerto, no final deste ano.

Folheando o programa não deixo de reparar que L. Subramaniam é apresentado como o virtuoso do violino.

O virtuosismo em si não é interessante, seja qual for o tipo de música, tem que ter uma expressividade. O Subramaniam já tem quase setenta anos, é um grande mestre da música carnática, ou seja, da música clássica da Índia do sul. Vi um concerto dele o ano passado em Paris onde misturava música clássica ocidental e música da Índia, tocou com uma orquestra de câmara e com Amandine Beyer, violinista que toca mais música Barroca. Ela em torno do reportório de Bach e ele a sua música. Gostei do concerto e convidámo-lo.

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L. Subramaniam

Outro nome associado a outras áreas musicais é o de Adriana Calcanhotto.

Ela já fez um concerto no ciclo Músicas do Mundo onde atuou a solo e na mesma semana deu um concerto com a nossa Orquestra onde interpretou o Pedro e o Lobo. Este é um concerto um pouco especial. É um concerto com Arthur Nestrovski que já foi apresentado na biblioteca da Universidade de Coimbra, há um ano sensivelmente. Foi um concerto para convidados, a propósito do aniversário da Universidade e onde ela foi distinguida Professora Honoris Causa. Ouvi falar deste concerto e perguntei se ela queria realizar o mesmo concerto para um público mais vasto. É um projeto onde mistura música brasileira e música portuguesa. Este concerto, tal como o do Zambujo, tem a particularidade de apesar de serem músicos já bastante conhecidos, irão ser apresentadas outras facetas dos seus trabalhos. Não queremos, nem podemos concorrer com o Coliseu, mas se os autores quiserem experimentar outros caminhos a Fundação acolhe-os de bom grado.

Muitas vezes aproveitam-se ciclos deste tipo para se promoverem trocas de experiências entre os artistas nacionais e estrangeiros por exemplo através de residências artísticas ou outros modelos. É intenção aproveitar este ciclo para tal?

Até agora não fizemos e não temos projetos concretos neste sentido, mas dentro da Fundação há práticas neste sentido e não seria impossível fazer, mas por momento, não temos nada.

Muito do interesse que suscita o que se denomina como Músicas do Mundo vem do facto dos autores tocarem instrumentos que não nos são muito familiares e alguns em risco de desaparecer. Seria possível conhecer mais sobre os instrumentos e a forma como os tocam através de uma "sessão de divulgação", por exemplo?

Fazemo-lo quando é possível. Muitas vezes os músicos e sobretudo os músicos do mundo vêm de longe e os concertos na Fundação inserem-se numa tour mais vasta. Por razões de planeamento, razões económicas ou de tempo os concertos acabam por ficar apertados uns nos outros e as possibilidades são limitadas. Mas, sempre que for possível, cabe bem no nosso projecto, naturalmente.

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