MÚSICA

  • none
  • none
  • none
  • none

Fotografia: António Néu.

Semanas antes já projetava na mente a imagem de vários músicos no auditório do Mudas ávidos por comunicar a sua música conceptual com um público também ele ávido por ouvir sonoridades musicalmente encriptadas e pronto para as descodificar e viver com a intensidade necessária todo o ambiente que ali se cria.

Um dia antes da viagem fechámos a nova edição da Umbigo, já a madrugada ia alta. No dia seguinte a sensação de dever cumprido tornava-nos mais libertos para quatro dias de MADEiRADiG. Já no avião o tempo foi intercalado entre leituras e memórias do ano passado deste festival surpreendente (ver reportagem). Não só pela inusitada escolha musical como pelo lugar onde tudo se desenrola ao longo do dia: a Estalagem da Ponta do Sol numa localidade onde o tempo ganha outra dimensão. O stress de Lisboa fica para trás e dá lugar à qualidade na forma como aproveitamos o tempo. Conheço alguns dos músicos que fazem parte do programa deste ano mas confesso desconhecer os restantes. Não por falta de informação e detalhes fornecidos pelos diretores e curadores Rafael Biscoito (Agência de Promoção da Cultura Atlântica - APCA ) e Michael Rosen (Digital in Berlin), mas sim por opção. Algo que o público deste festival realmente aprecia é o elemento surpresa. Confiam totalmente nas escolhas e a partir de agosto a Estalagem Ponta do Sol fica esgotada apesar de o programa só ser lançado em setembro/outubro. É este desconhecido que me interessa explorar e sentir ao entrar no auditório, como se a própria música ganhasse outros contornos e dimensão.

Viagem Psicadélica

O público chega dos vários cantos da Europa, principalmente da Alemanha, e a seleção musical é feita de forma criteriosa e 90% baseada nas tendências atuais do universo da música eletrónica experimental. Este ano houve uma grande aposta em artistas norte-americanos sendo um público que Rafael Biscoito pretende cativar para que conheça o festival. Rafael é um freak da música eletrónica experimental tornando-se numa espécie de enciclopédia destas sonoridades que ouve desde os 16 anos. “A música sempre foi a minha droga e sempre fui obcecado em conhecer tudo numa busca permanente por coisas novas. Tenho uma lista enorme e o line up prende-se com uma série de questões, principalmente perceber se estão a lançar algo de novo ou prestes a fazê-lo”. Uma boa mostra que se desenrolou ao longo de quatro dias com dois concertos por dia (um número perfeito para que possamos absorver e refletir a experiência passada pelos músicos).

Please activate Easy Media Gallery Pro license key. You can activate here

O primeiro dia arrancou com o britânico Peter Kember aka Sonic Boom, fundador da banda Spacemen 3 nos anos 80. Peter deixou a Inglaterra e vive em Sintra desde abril, uma tendência que já começa a tornar-se habitual dado o elevado número de criativos que está a escolher Portugal para viver. Peter levou-nos numa viagem sónica por caminhos psicadélicos provocando na audiência a descontração total. Todo o ambiente do MADEiRADiG fá-lo lembrar alguns festivais dos anos 80 pelo facto de ser muito inclusivo para as bandas. Para ele as atuações são sempre diferentes tornando-se uma surpresa de cada vez que sobre ao palco. Três ou quatro pessoas adormeceram nos últimos 10 minutos, algo que lhe agradou especialmente pois a sua intenção é transportar o público para um outro lugar. “A minha música é inspirada em drogas psicadélicas e a performance que fiz no Mudas parte de um trabalho relacionado com a natureza algo que estou a desenvolver atualmente e que vai evoluindo”. A acompanhar o concerto vários vídeos de animação abstrata, fundamentais para a performance, o que aconteceu aliás com a maioria dos concertos pautados com uma forte presença de vídeo arte e dos quais também se destaca o sueco Peder Mannerfelt que surgiu enigmático em palco com uma peruca loura que lhe cobria totalmente a face. Peder conduziu o público e dominou totalmente o espetáculo “como um pastor que conduz as pessoas para determinado sítio”, constatou Rafael, e a sua atuação foi considerada uma das melhores do festival. “Surpreendeu-me como se tivesse levado um estalo na face” disse Carsten que chegou de Munique pelo quarto ano consecutivo e faz questão de não perder um MADEiRADiG, sendo principalmente fã das after-sessions na Estalagem da Ponta do Sol. “Gosto bastante das escolhas e adoro a sensação de estar a dançar no meio do Atlântico. O DJ set de Firmeza & Lilocox foi ‘uau’, simplesmente avassalador”. Chegaram de Lisboa com a curadoria de André Diogo e Nuno Barcelos (Estalagem Ponta do Sol) e colocaram o público todo a dançar. Ninguém ficou imune à energia destes dois DJ's afro-beat-house-kuduro e o ponto alto deu-se quando passaram uma versão de Grândola Vila Morena colocando o norte da Europa a olhar para os portugueses que sabiam a letra do princípio ao fim. Algo que também atrai Carsten especialmente é a inexistência de espaço entre público e artistas. “É bom poder estar entre os vários artistas, conversar com eles sem me sentir intrusivo, pelo contrário”. Existe de facto esta atmosfera única e intimista que não se encontra em mais nenhum festival. Os músicos são desprovidos de pretensiosismos e têm especial interesse em conviver e trocar ideias com os vários “habitantes” da Estalagem sobre as propostas que vêem ao longo dos dias. É muito frequente encontrá-los na piscina, estrategicamente posicionada acima do oceano, ou no bar do hotel a beber um copo de vinho e a admirar a vila da Ponta do Sol.

Outra das atuações que gostámos especialmente nas after-sessions foi o live-act de Anenon, o projeto de Brian Allen Simon que veio de Los Angeles para criar um ambiente especialmente belo, ao som do seu saxofone. O concerto evoluiu para uma atmosfera cinematográfica que envolveu o público numa autêntica poesia musical. Brian chegou para dar sete concertos pela Europa sendo a Madeira o ponto de partida perfeito para a tournée. Considerou o MADEiRADiG “overwhelming, principalmente pelo facto de estar fora do mapa dos festivais habituais”. Brian já se apaixonou por Portugal, a seguir à tournée vai passar uns dias em Lisboa e segue para Évora onde vai estar na passagem de ano.

Please activate Easy Media Gallery Pro license key. You can activate here

“Emociono-me com a Beleza”

Ben Vida chegou de Nova Iorque e partilhou o palco com Marina Rosenfeld – com quem já atuou uma vez – num concerto que reuniu consenso por parte da audiência. Todos gostaram deste diálogo musical a dois, composto por um background híbrido em termos de composição, arte e improvisação. Para Ben Vida é fantástico poder estar no meio de um público e de músicos cujos interesses musicais se cruzam e “chegando de Nova Iorque, o ar é tão puro e perfeito que me apetece dedicar algum tempo a estar simplesmente sentado a respirar profundamente” disse, entre risos, acrescentando que o festival “tem sido uma excelente experiência a vários níveis”, principalmente musical, tendo gostado especialmente da atuação de Kassel Jaegar, nome artístico do parisiense François Bonnet com quem mantive uma das mais interessantes conversas. François é um teórico, um investigador. Faz parte do Groupe de Recherches Musicales e no âmbito do seu trabalho de investigação, tem publicado uma obra escrita relativa à teoria musical. O seu concerto teve a duração precisa de 25 minutos, o tempo que considera perfeito para cativar a atenção por parte da audiência. “Eu prefiro que as pessoas digam que o concerto foi curto ao invés de longo. A música que fazemos é muito exigente e como espetador não me consigo focar durante 40 minutos, é demasiado tempo. Se eu quero que as pessoas estejam completamente imersas na minha música e que não se aborreçam não dou concertos superiores a 25 minutos”. François não gosta de tocar em frente ao público, prefere estar entre a audiência “para que possamos estar na mesma situação a sentir a música da mesma forma. Componho sempre a pensar em quem vai ouvir e sou eu próprio o meu primeiro ouvinte e crítico”. Para ele a experiência de atuar no MADEiRADiG: “was pretty enjoyable”, disse acrescentando que aprecia a diversidade da programação tendo gostado particularmente da subtileza da atuação de Zeena Parkins. Uma verdadeira lady, pertencente a uma velha guarda musical, foi uma das grandes apostas deste ano. Formada em Belas Artes, estudou dança, harpa e piano clássico. Dos seus projetos mais recentes fazem parte colaborações com Björk e Thurston Moore. “A Zeena diz-me muito pessoalmente. É uma artista que acompanho há muitos anos, desde o início dos anos 90. Fez parte do grupo da downtown nova-iorquina e chegou a lançar um álbum na editora do John Zorn. O concerto dela toucou-me bastante e fico muito satisfeito de ter oportunidade de a ter por cá”, contou Rafael. Zeena veio até ao Mudas para nos mostrar o seu know how na beleza de estar em palco oferecendo ao público uma performance memorável. “Emociono-me com a beleza” deixou escapar Maria Fernandes, membro da organização, relativamente ao concerto de Zeena. Maria passou todos os dias de sorriso nos lábios a apoiar os músicos bem como a agilizar as entrevistas, algo que permitiu a Rafael Biscoito uma melhor fruição do festival.

Please activate Easy Media Gallery Pro license key. You can activate here

Após os concertos no Mudas dá-se um intervalo para um buffet que antecede as after-sessions. Foi no espaço ao lado do buffet que começámos a aperceber-nos do gospel que invadia a sala. Era a voz de Islândia, uma brasileira residente em Berlim que faz este percurso Ponta do Sol-Calheta há três anos. Islândia não vem só pela música e sim porque quer desligar-se da confusão citadina e entrar em contacto com a natureza. É no seu espaço, e do marido, o Musikbrauerei em Berlim, que Michael Rosen, uma vez por mês, organiza concertos de várias bandas. Algumas vêm posteriormente ao MADEiRADiG. Islândia atrai-se pela “diversidade de culturas e venho para receber essa energia tão gostosa. Há uma vitalidade que sinto mal chego”. Outro dos aspetos que que salienta é a hospitalidade. “Não existe uma pessoa que trabalhe no hotel ou nos restaurantes que não seja incrível. Sinto-me em casa”. A mesma empatia acontece com as várias pessoas que trabalham na estalagem como é o caso de Duarte que há três anos que vê com satisfação esta agradável rotina que acontece todos os anos no início de dezembro. “Já conheço várias caras e muitos trazem novos amigos que passam também a ver-nos como família, o que é motivo de grande orgulho".

Faulker chegou da Alemanha pela primeira vez aconselhado por vários músicos. É bailarino, vive numa permanente pesquisa por novas sonoridades e considerou todo o festival bastante inusitado, não só devido a toda a envolvência cosmopolita e familiar da Estalagem como pela diversidade musical. “Agradou-me especialmente a cena avant-gard que encontrei nos vários concertos. As conexões com Cabaret Voltaire, movimento Dada e muitas outras leituras possíveis”. No último dia encontrámo-lo a fazer vários passos de dança à beira da piscina e apesar do frio que se fazia sentir os nórdicos invadiram-na em braçadas ávidas. Simonetta chegou de Itália pela terceira vez tendo-se tornado fã do festival, independentemente dos músicos convidados pois confia na programação. Passou os dias todos em festa e surpreende-a “o espírito intimista deste festival e a surpresa deste sítio maravilhoso. Gosto do facto de estarmos todos juntos: músicos, público e jornalistas”. Deixou-se levar pelo concerto de Peder Mannerfelt e teve um “ataque de adolescência” com  Yves Tumor (Sean Bowie), o artista que lhe despertava mais expetativas. “Adorei o concerto, a sua atitude e energia perante o público”. Segundo referencia a revista Pitchfork: "tal como James Ferraro ou Dean Blunt, Yves usa loops de percussão inquietantes e gravações para criar uma atmosfera como se estivesse perdido numa paisagem urbana estranha." Pouco tempo depois de pisar o palco começou a andar em círculos de forma obsessiva fazendo-nos lembrar um animal enjaulado. Num crescendo o concerto tornou-se catártico com parte da audiência no palco numa performance como não via há muito. De uma fisicalidade extrema, Yves interagiu com o público durante mais de meia hora percorrendo os vários bancos do auditório. A audiência reagia num misto entre a vibração o incrédulo e o entusiasta. Os strobs, a violência da música tensa e a sobredose da energia de Yves contagiou a audiência. Quase no final da performance disse-nos em jeito de statement: “I live in this shit hole called Germany and I haven't seen the sun for six months. Thank you MADEiRADiG for bringing me here”.

Please activate Easy Media Gallery Pro license key. You can activate here

Fazendo um balanço dos quatro dias fica a sensação de pairarmos por diversas paisagens sonoras que evoluem consoante a sensação que os músicos nos pretendem transmitir como se nos guiassem através de sensações.

ARTIGOS RELACIONADOS

Música

Newsletter

Subscreva-me para o mantermos actualizado: