Fotografia: Vera Marmelo.
A imaginação é património coletivo não passível de usurpação
"Ontem ouvi o teu single e gostei bastante", assim de rompante no meio da conversa com Alexandre Rendeiro / Alek Rein. Se pela singularidade do autor ou pelos universos ficcionais que cria em torno do seu heterónimo musical, Alek Rein, o facto é que fica sempre uma fresta aberta para nos aventurarmos no universo pintado com as marcas da imaginação de ambos, que embora dissociáveis, os misturamos frequentemente.
Amanhã, na ZDB, não se trata de mais um convite para o lançamento de uma primeira obra (Mirror Lane - ZDB) antes um passo para dar fôlego à imaginação que nos deve consumir, seja na construção de um tão ansiado Dia D, seja em pequenas acções quotidianas que nos conduzam à mudança. Tudo o resto não é opção. A acompanhar o Alexandre, Luís Barros na bateria e o Alex Fernandes no baixo.
–
Sempre que te vejo tocar lembro-me frequentemente da frase escrita na guitarra de Woody Guthrie - This Machine Kills Fascists. Ainda faz sentido esta frase?
Acho que esse período já passou um bocado, o da guitarra assassina de fascistas. Isso foi até pouco tempo depois do PREC acabar. Acabou de vez. A canção de protesto já foi ela própria tornada uma mercadoria, já é um género que fica cool. Quando começas a categorizar a música já a podes pôr como uma cracházinho no casaco e quando é assim perde o poder concreto, uma vez que a música de protesto é feita em sítios de protesto e não podem entrar no fluxo do mercado como as outras coisas. A música de protesto tem de quebrar o fluxo de mercado e não acontece isso hoje em dia. Por muitas boas intenções que tenham tido os Homens da Luta aquela caricatura em vez de aumentar o potencial, penso que o matou mesmo, deu o último pontapé na cabeça quando a canção de protesto já estava no chão, e eles vieram e ainda lhe deram o tiro da misericórdia.
Quando por exemplo vez os últimos álbuns do Neil Young, com uma mensagem clara de alerta para os perigos de empresas como Monsanto, não pensas que há espaço para a música abraçar causas não tão genéricas, mas mais específicas?
É sempre válido escrever sobre esses assuntos, mais ou menos politizados, mas é sempre bom pôr a imaginação das pessoas a funcionar – o mundo podia ser de outra maneira. É por isso que algumas letras de Alek Rein são mais explícitas a nível político, mesmo que não haja causa - efeito concreta como talvez já houve, ou seja alguém tocar uma canção em determinado momento e constituir um corte em relação ao dia-a-dia. O obejtivo é sempre pôr a imaginação das pessoas a bombar – devia ser diferente este mundo. São as canções do Zeca por exemplo, ou as do Neil Young imagino, em que essas empresas não pedem a opinião de ninguém, em que o lucro vem em primeiro lugar, antes da saúde ou ambiente. É importante continuar a fazer isto, não consigo é acreditar na arte que não tem um paralelo com o ativismo ou movimentos de resistência. Ela não cria as coisas sozinha, é preciso uma organização à parte.
Remetendo para um contexto mais próximo, um Festival como o Rama em Flôr em que se aborda a questão dos limites e lhe associa um conjunto de iniciativas desde conferências, exibição de filmes, concertos pode ser um desses espaços de imaginação a que te referes?
Acho que sim porque todos eles pensam muito sobre os limites da identidade – O que é que sou? O que é que ele é? Como me vêem? Um bom exercício de imaginação é pensar um bocado sobre isso, sobre os nossos limites. Muitas dessas bandas, como por exemplo os Vaiapraia, eles tentam isso ao limite, através da criação de uma data de micro personagens. Penso mesmo que supera a cena do género e da sexualidade, é mesmo – Quem é suposto eu ser? Como é que me devo comportar? Qual a minha coerência e o que as pessoas estão à espera de mim? Acho muito importante como espaço de imaginação sim. Se olhares para ti próprio e vires que os limites és tu que os defines todos os dias. Assim, quando tu vês que os teus limites são o teu arbítrio, não digo que o sejam a 100% pois há os traumazinhos, marcas da personalidade que não se conseguem apagar, mas podes sempre imaginar-te de outra maneira.
Dentro das letras que compões estas preocupações de que falamos são abordadas? Houve uma grande alteração a este nível desde que começaste a escrever?
Só para contextualizar Alek Rein apareceu como uma variação básica do meu nome, Alexandre Rendeiro. Nessa altura, andava a ouvir bué Pink Floyd com o Syd Barrett e andava a explorar um tipo de letras que não tinha muito a ver com o meu dia-a-dia, não era muito autobiográfico, era fantasioso. Há uma malha do início dos Pink Floyd que é a Jugband Blues, que é a última malha que o Syd Barrett escreveu com os Pink Floyd. Nessa malha ele diz - And I'm wondering who could be writing this song. Esta frase aparece imediatamente antes do refrão, na altura bateu-me bué. É ele que está a escrever, é ele que está a cantar. Eu comecei a olhar para as minhas letras e reparo que não tinha vivido nada daquilo. Eu nunca estive no campo daquela forma, nunca tinha viajado assim. Comecei a pensar também - quem poderá estar a escrever esta canção? Comecei a pensar que Alek Rein poderia ser outra pessoa, não só uma variação minha, não um alter-ego, mas um heterónimo mesmo. Partindo deste ponto comecei a escrever letras que se adequassem ao mundo dele e não ao meu. O exercício de escrever canções para o ou do Alek era quase colorir o universo dele, dar-lhe pistas de como é que ele vive, que pessoas é que conhece? Que amores é que teve? Desgostos, etc.
Se puderes falar pelo teu heterónimo, qual é o universo do Alek? Porque no fundo o teu universo e o do dele não se deixam de contaminar.
Ele é também um gajo politizado que ainda tem mais experiência do que eu na canção de protesto. E faz as coisas dele, na terra dele que é Montana. Só que nós estamos em eras desfasadas. O Alek é uma personagem dos 70´s para eu poder exercitar a canção dessa altura. Na época dele é ainda mais relevante do que para mim aqui em Portugal. Ele é anti-capitalista do que eu percebo, consegue perceber o fenómeno da exploração, não gosta disso, também não gosta do Estado, gostava que as pessoas se auto-gerissem sem polícia, sem essas instituições de coerção, mas ele é um bocado mais utópico do que eu. Ele acredita que pode haver um dia, o Dia D em que as pessoas têm um rasgo de imaginação e que todas dão as mãos e cai a utopia sobre o mundo. Eu não sou utópico a esse ponto, mas acredito lentamente, com pequenas micro revoluções pelo mundo fora que possa acontecer alguma coisa. Não acredito é nesse Dia D, no sentido messiânico. Acho que é isso que nos distingue um bocado.
Porque sentiste a necessidade de gravar um disco? Num plano utópico não bastaria passar a mensagem entre pessoas comuns à mesma causa?
Foi um sonho antigo ter um disco, um vinil. Desde que sou puto que gostaria de ter um vinil com música minha, acho que ia dar um grande orgulho ao meu pai que é grande fã de música.
Mas a pressão familiar não é um constrangimento burguês?
Claro que é. Estás-me a entalar, tu (risos). É um constrangimento burguês, mas eu não consigo apagar a relação que tenho com eles. A relação que eu tive com eles foi mais emancipadora, do que conservadora em torno de valores burgueses. Apesar de eles terem os seus ideais do que é uma boa via, do que é um bom caminho a seguir, uma boa moral de respeito ao próximo, havia uma cena que era mais importante do que isso, que era eu estar feliz. Este egoísmo supera tanto o bem estar burguês, como a obsessão do proletariado. É uma cena que vai para além disso tudo. Deram-me espaço a mim para me organizar com que eu gosto, para nós criarmos um grupo para viver da forma que nós achamos por bem viver. Ou seja, não em torno de bens materiais, mas dos meus próprios valores. Isso não é bem burguês, é pós-burguês ou qualquer coisa assim.
Passando para o Mirror Lane quais foram as tuas principais preocupações, seguir a época do Alek e trilhar o caminho dos álbuns conceptuais ou o Alek decidiu seguir outra direcção?
Houve uma preocupação de colorir o universo da personagem, mas não numa narrativa linear, ou seja as canções não desaguam umas nas outras sequencialmente, foi mais pelo tom que isso foi decidido, não tanto pela cronologia e pelos passos dele. Ele não entrou numa portinha, e depois está lá um dragão e ele matou-o. Não é nada disso. Em relação do Ziggy, do Bowie, é diferente porque tens o nome de David Bowie no anúncio da sala de concertos em vez de Ziggy. Aqui é diferente, aqui é Alek Rein a cantar sobre Alek Rein, não há essa separação como no Bowie no meu caso, por isso é que tudo se torna mais confuso. Eu gosto dessa confusão porque alimento o tal debate entre a identidade e o autor.
Penso que o Alek Rein também acredita que o trabalho é um processo coletivo. Gostava que falasses um pouco desse processo.
As roldanas da fábrica, é isso? Começando em mim, estou em casa com a guitarra acústica a escrever letras. O primeiro passo foi a primeira formação da banda, com os primeiros arranjos para as músicas e a certa altura andava à procura de uma pessoa com quem gravar o disco e apareceu o Filipe Sambado. Tem o estúdio no espaço Interpress (Bairro Alto) e foi ele que gravou o disco. Tem uma paciência infinita, dá as suas opiniões mas não é taxativo. Ele foi extremamente generoso, cedeu o espaço, esteve comigo horas sem fim a gravar. A etapa seguinte foi ir para os estúdios da Golden Pony o Eduardo Vinhas esteve comigo e quando este processo terminou a ZDB pegou nas cenas e como tinha um contacto em Nova Iorque para a masterização enviámo-lo para lá. Outros que me marcaram bastante foram os músicos que participaram, obviamente.
E o Cristiano Nunes, o técnico de som da ZDB?
Ele ajudou-me diretamente, a nível de motivação, teve bastante paciência, ouviu o que estava a fazer, tirou apontamentos. Lá está é daquelas pessoas generosas que encontras aí e que não tem um farol a dizer - Eu sou generoso! Está um bocado fora das luzes da ribalta, mas é ele que está a mexer nas luzes da ribalta (risos). Ajudou-me a gravar uma cena que ficou tipo demo lá na ZDB.
Como evoluiu, em termos de banda e composição dos temas, desde a gravação do primeiro EP até ao Mirror Lane?
Desde o Gemini (2010) mudou muita coisa. Não só os músicos que me acompanharam. Mudou também muito o feeling das coisas, não sou muito autoritário nisso. Prefiro que sejamos todos a ver se aquilo faz algum sentido do que obedecer a um cânone ideal que eu tenho na minha cabeça. Enquanto está na minha cabeça não passa disso mesmo, um sonho.
Como conseguiste seduzir os músicos a entrar no universo do Alek Rein?
Falamos bastantes vezes e divagamos um bocado. Gosto de trocar impressões sobre isso porque toda a gente tem esta capacidade de sonhar. Eu gosto de ver como o meu sonho puxa os demais. A nível de letras o input nunca foi muito grande porque eles sabem que eu sou um Estaline (risos).
Por exemplo, a meio de uma canção há algo que é dito, uma coisa mais dramática. Eu tento dizer que ao Alek lhe aconteceu isto e como a partir daqui vamos colocar isso em prática. Mudamos de dinâmica? Exageramos? Eles tentam colorir a paisagem emocional do Alek.
Como geres esta coisa de tocares ora a solo ora em banda?
Ambas têm dois lados da moeda. Tocar a solo traz-me confiança e insegurança ao mesmo tempo e proporcional. Tudo depende de mim e sei que só eu posso falhar e isso traz-me confiança. Por outro lado, tenho bastante confiança porque estou a tocar com músicos que gosto e confio, mas há mais coisas que podem escapar-me ao controlo. Somos todos humanos e as coisas podem falhar. Não estou a tocar com máquinas. São gozos diferentes. Da minha história de ouvir música vou sempre mais para o formato em banda, porque isso foi o que sempre me deu mais trips. A trip do cantautor solitário também é profunda.
De certa forma sempre estiveste muito ligado ao universo das Maga, quer às Magasessions, quer ao Magafest, onde tocaste recentemente. O que te atrai tanto nas Maga?
Há uma proximidade com o músico, com o ato, com a encenação. Penso muitas vezes, apesar de não ter feito nada por mudar isso, se calhar por incapacidade minha, por serem demasiados fatores ou por estar fora do meu controlo, eu penso muito na barreira entre o músico e o público. Lembro-me de um Festival em que participaram os The Clash, festival nos anos 70, só com alinhamento de bandas punk, os gajos foram os únicos que tentaram derrubar as grades. Os outros eram punks também, se calhar tinham isso escrito nas letras, mas ninguém fez nada, mas a meio de uma canção os The Clash derrubaram essas grades, uma vez que não fazia sentido aquele distanciamento. No universo das Maga, apesar de haver bilhete, haver entradas há uma proximidade bastante saudável e bonita. Quase que levas com a baqueta de um gajo que está ali a tocar ou com o suor do Ferrandini. Gosto de estar perto do músculo. Feito com boa onda, feito também para os músicos onde podem trocar impressões, a viver um bom bocado.
Lembro-me bastante de quando abriste para White Fence. Já tendo alguns concertos no lombo, quais foram os momentos que mais te marcaram?
Esse foi um deles. Correu mesmo muito bem. Outros não tanto pela performance em si, mas pela estranheza, ir tocar ao Super Bock Super Rock, foi estranho, mas divertido. O que eu guardo mesmo é quando nós enquanto músicos saímos orgulhosos com o que fizemos.
Em que situação nunca te imaginarias a tocar?
Recusaria tocar à pala num grande festival. É boa onda, verão mas tu sabes que o objetivo daquilo é garantir dinheiro para os patrocinadores e organizadores. Nesse contexto não faz sentido. Não alinho na cena do promover a tua banda custe o que custar, nisso não alinho.
E o que se segue?
Agora entrámos numa nova fase uma vez que temos novo baixista. Já antes dele sair, tinha a ideia de mudar a formação, começar a tocar com quatro pessoas, ou seja com dois guitarristas. Ainda há muito para explorar em trio, formato que sempre curti, mas acho que para a música, para o que tenho na cabeça estou com vontade de fazer experiências com mais um guitarrista.
Quem gostarias de convidar para o universo do Alek Rein, que ainda não convidaste?
Gostava de trabalhar com pessoas que pudessem fazer expandir o imaginário por causa das letras, da poesia. Há outras que gostava de trabalhar por causa da música, do feeling. Sei lá, já tive mais esse vontade. Oh pah, eram os Led Zeppelin.
Tendo uma formação em Belas-Artes como incorporas essa vertente no teu trabalho, nomeadamente no novo álbum?
A capa fiz com a Ana Baliza. Eu fiz a montagem que está na capa que é uma personagem que é o Alek, não tem cara, é o Golden Man, que é uma personagem que aparece no primeiro EP, e a raposa que é o animal de estimação do Alek, é essa trindade. A Ana Baliza ajudou-me na parte da cor, com as questões mais técnicas da impressão, com o design do verso que incluí as letras, para as pessoas as puderem acompanhar. Muitas vezes as pessoas curtem as malhas, mas não estão com o ouvido afinado, nem eu muitas vezes. Foi muito fácil chegar ao resultado final.
E como te "desligaste" das Belas-Artes para te dedicares a 100% à música?
Em Belas-Artes comecei, muito cedo, a tratar a questão da autoria e aí fazia música sem pensar muito nisso. Escrevia-se e pronto. Em Belas-Artes essa era uma das grandes questões - a autoria, o objeto, o tal limite entre o público e o espetador, a arte interativa. Aí ganhei essas noções. Tive uma banda em Belas-Artes que não deu em nada e depois disso ter acabado queria uma cena a solo, que eu tivesse o controlo, que não estivesse à mercê de caprichos, disponibilidades de que a música dependesse da minha capacidade ou não em fazer canções. Aí pegava na guitarra e ia tocar no Botequim ou em qualquer lado. Se isso se nota na trajetória de Alek Rein? Acho que sim, tanto na questão da autoria como na questão do cosmos, perceber como cada elemento, parte de cada canção faz parte de um todo e esse todo está aberto a diferentes interpretações e que há coisas que me escapam ao controlo. Tudo isto tínhamos de pensar em Belas-Artes quando estávamos a produzir uma obra. Se calhar substituí um vídeo ou uma instalação por uma canção aplicando as mesmas problemáticas de interpretação e criação.