A não perder e a merecer sem dúvida uma visita com tempo, sugiro a mostra de uma coletiva (O Enigma - Arte Portuguesa na Coleção Berardo) que está a decorrer até Setembro, organizada pelo curador Pedro Lapa em torno da questão do enigma.
A exposição reúne seis peças distintas de sete autores nacionais já suficientemente premiados, de uma produção artística indiscutível, pertencentes ao acervo da Coleção do Museu Berardo. Qualquer dos nomes referidos não tem nenhuma relação de afinidade entre eles, quanto ao percurso e ao aspeto formal, pelo facto das peças apresentadas serem de natureza e suporte visual diferente, num grupo de artistas com preocupações diversas que não fazem parte da mesma geração. Por isso, estão trabalhos que vão desde 72, o mais antigo, de Ana Vieira (1940-2016), até ao mais recente, onde figura uma intervenção Horizonte de Acontecimentos de 2008 da parelha João Maria Gusmão (1979) e Pedro Paiva (1978). A estrutura com a reprodução de Vénus de Milo na instalação Ambiente de Ana Vieira remete claramente para as experiências dos limites das convenções dos média e os mecanismos de receção, para a reprodutibilidade da obra de arte e para a sua dessacralização, denotando-se uma crítica subjacente à monumentalidade e aos ideais clássicos. Observam-se também duas peças escultóricas de chão Os Observadores / Atlas Coelestis VI com variados materiais de Cabrita Reis (1956). A obra em ferro Menos Arte de Rui Chafes (1966) de 2005 de grande porte funciona como um casulo, uma casa aberta que serve para ser habitada pelo corpo à semelhança da sua produção inédita e original Comer o Coração que realizou na mesma época juntamente com a coreógrafa Vera Mantero. Aliás dez anos mais tarde o artista está a apresentar novamente a mesma ideia com a introdução de alterações em Comer o Coração nas Árvores.
Na área da fotografia, destaca-se um vasto painel de fotografias da série Nox de Jorge Molder (1947) e um vídeo Tornado de João Tabarra (1966). Esta última obra revela o aspeto da ação performativa onde a personagem central é o próprio artista à semelhança do Encantador de Serpentes, onde introduz em ambas as situações cenas dramáticas e com humor na ação repetida resultando porém num esforço infrutífero e portanto atingindo um lado absurdo. O facto de diversificar periodicamente um determinado acervo os trabalhos do seu espólio para exposição consoante uma metodologia demonstra a grande vitalidade e dinamismo do curador. Será igualmente uma forma de dar a conhecer, oferecendo aos olhares do público novos contextos a extensa coleção, e, neste sentido P. Lapa pretende produzir um segundo evento sobre um tema diferente com a colaboração de outros autores.
A intenção de P. Lapa é «Gerar olhares perplexos e suscitar reflexão»
Cada uma das peças, de forte densidade tem um carisma próprio, dada a sua singularidade e possui uma marca distintiva característica do estilo do seu autor. O que as une neste momento, não é tanto a formalidade do conjunto mas sim no campo concetual em que o fio condutor no espaço expositivo gira em redor de um tema sugestivo que nos levaria muito longe na vertente simbólica, literária e filosófica. Segundo o curador a noção de enigma que define a exposição insere-se na Teoria Estética de Adorno que não é exclusiva de um período ou movimento específico mas é transversal à arte. O termo enigma como título já de si é profundamente enigmático, gera um efeito perturbador porque entra no domínio do equívoco e do mistério. A conotação da palavra tem uma carga difícil de ser escamoteada, de se abstrair, de uma enorme abrangência, de definição complexa, com grande hermetismo que nos pode conduzir a uma elevada subjetividade, levada ao seu extremo limite quanto à sua compreensão e legibilidade oferecendo múltiplas leituras, e por conseguinte de uma radicalidade assumida.
Qual foi o critério que presidiu para a escolha destas peças? Existe uma relação com a operação da adivinhação que é um dos significados do substantivo enigma. Um exercício a fazer com o visitante consiste em interrogarmo-nos qual delas se torna mais enigmática do que a outra. Entre a liberdade que a obra implica e a limitação desta enquanto particularidade no mundo, manifesta-se um paradoxo que define a sua existência como incerteza.
Nesta exposição torna-se central procurar apresentar o momento de incerteza no interior do trabalho artístico como uma dimensão fundamental da arte. As dúvidas sobre a sua existência que se tornam aqui fundamentais para a sua razão de ser. Estes trabalhos partilham uma ideia que, também é comum à arte, a mostra pretende representar o momento de incerteza no interior do trabalho artístico. É um problema transversal à arte. O enigma poderá assim constituir em si a própria arte.