Fotografias: Denise Cunha Silva.
Transgressor, declamador, salvador (?)
21 milhões de habitantes, 39 municípios, 2000 km2 de área urbana, número estratosférico de etnias, trânsito caótico, onde rico anda de helicóptero, pobre, se tiver sorte e não tiver sido alvejado, de ónibus ou riquexó. Não é cidade, quanto muito megapolis, de certeza um país. Cair em São Paulo é rodízio de culturas, fatia aqui, fatia ali e no final come-se mundo. Criolo é comilão, bom garfo ou gourmet não importa a designação e ainda melhor cozinheiro. Quanto baste de hip-hop, rap na antiga designação, funk, reggae, afrobeat e samba rock tudo cabe nesta refeição. Tudo. Menos não é mais.
De túnica branca com bomber por cima. Na contradição ou melhor na síntese. O guerrilheiro e o pacificador, um só. Há pobreza, há miséria, trabalhador é mal pago e maltratado, há homofobia, descriminação e desigualdade. A palavra é uma arma e a canção é o gatilho, se pensas que se vai lá só com refrão, tudo isso é pura ilusão, mas inquieta. O que tudo vence é o amor, a comunhão e a união. “Deixa entrar a música em seu corpo” e “A confluência cósmica fazer o seu trabalho” atira para plateia completamente rendida e para o infinito. Um espaço ingrato, o Armazém F, lotado como metro em hora de ponta, de muita classe trabalhadora e filhinho de mamãe também, muito português e brasileiro em ovação delirante. Orixá, contestatário, educador, libertário e de sedutor todos temos um pouco. Criolo tem tudo. Nesta noite de Sexta-Feira, não se é jornalista, muito menos cronista. Amargura-se não se ter lido com mais atenção Beck, Bourdieu e Foulcault. Isto não é só música é tratado social. É doutoramento em cultura urbana e Convoque seu Buda leitura obrigatória.
Criolo é saber acumulado. Quarenta anos, muitos deles em favela, em colectivos vários, nas periferias e martelo em bigorna das ideias feitas – “O que é classe C? Pacote de leite?”, “Quem tem medo do povo? Quem se esqueceu de ser do povo?”, “Saúde não é comércio”, “A mão do chicote não é invisível” já tinha ele avisado em entrevista com Lázaro Ramos. Mas também plaina – acredita como ninguém no colectivo, e o colectivo retribui tamanha dose de amor, raros foram os temas, cada sílaba para ser mais exacto, que não foram cantados a meias. Sim, o público aqui foi/teve voz. Foi nostalgia, no tema de Ana Moura, exaltação de nacionalismo (haverá quem acredite mais no povo brasileiro?) e sedutor, em temas mais calmos, quase provocatório, num convite não explicito para dançar um tango ou milonga bastarda. Hora e meia depois e vontade de deixar em repeat Fermento Pra Massa, Plano de Vôo, Casa de Papelão, Cartão de Visita, e claro Não existe amor em SP. Je suis paulista. Imbuído de espírito contestatário, inquieto e sob um manto de ecumenismo e espiritualidade, não sei se dá para fazer uma revolução. Como mínimo um sobressalto – preferes os contos de crianças ou os contos de terror quotidiano impostos por uma minoria não esclarecida? E uma certeza – Ainda há tempo.