NOTAS SOLTAS

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Emaranhada nos meus fios escultóricos, entre paredes monásticas, encontro-me na residência para artistas Pedra Sina no Funchal. Projecto de um jovem Dinamarquês em parceria com a sua amiga Moldava, é um local de passagem para artistas de todo o mundo, que procuram uma razão pragmática que os atire para fora de casa e para longe dos seus medos. Encontram-se por aqui, com outros estranhos, para partilharem o que pensam ter em si, na esperança de receber mais do que dão.

Saí de Lisboa sem grandes antecedências, para ficar duas semanas a viver e a produzir uma nova instalação escultórica in loco. Sem financiamentos, e no voo mais barato que encontrei, carreguei na minha mala os materiais menos volumosos e vesti por camadas tanta roupa quanto possível, transformando-me num charriot ambulante, sem formas nem gosto fashion, arrastando o meu peso extra em movimentos controlados para não parecer muito suspeita aos olhos dos agentes do aeroporto.

Foi um voo falhado por duas vezes, voltámos para dormir em Lisboa e efectuar nova tentativa no dia seguinte. Fiquei logo com a ideia de que esta Ilha é muito dada a golpes de selectividade e pouco permissiva, mas depois de muitos choros, sustos, agonias e ao toque de taças tibetanas que uma passageira new age decidiu badalar na tentativa de acalmar os ânimos, lá aterramos aos solavancos na pista maluca.

Finalmente na Residência Pedra Sina. Dão-me a conhecer o espaço, os colegas e as regras da casa, e descubro que vou passar duas semanas a comer feijão com tofu, coisa que me arrepia o pensamento e que me leva a comprar uma garrafa de vodka ao fim das duas primeiras horas.

No meu quarto tenho um colchão em cima de paletes cor-de-rosa, uma secretária, um armário de prateleiras e dois cabides. O sítio é lindo e a vista sobre o Funchal, com o porto marítimo la muito em baixo, atrai-me para o jardim e eu declaro a happy hour como parte do processo criativo.

Na primeira manhã acordo enérgica para uma ida até à baixa do Funchal em modo jogging e calça de licra que chama a atenção dos transeuntes, pouco habituados a gente louca armada em urbanóide continental. De volta à montanha percebo o ridículo em que caí, é-me impossível subir sem gatinhar pelas ruas contorcidas, estou morta ao primeiro dia. A Ilha já me vergou à minha condição de perninhas de alicate sem estofo para a corrida vertical. Nunca mais vou sair da residência sem bilhete de autocarro ou boleia para voltar.

O tempo flui e o meu trabalho desenrola-se de dia e de noite, interrompido pela vodka e os cigarros da happy hour que agora já começa às três da tarde e intercala-se com a escultura que vou construindo. Arrastei as minhas colegas para o hábito e passamos horas ao sol em modo de cérebro vazio.

Vão passando pela residência alguns curiosos e outros artistas que nos vêm conhecer, mostram trabalhos que trazem consigo e querem ver o que fazemos. Arrasto-os todos para o jardim onde ficamos a conversar sobre tudo e sobre nada ao ritmo da happy hour já totalmente instituída.

Já de noite, sou chamada pela organização da residência a ir ao salão receber com etiqueta alguém que, ao que me dizem, “tenho” de conhecer. Bem-mandada que sou, interrompo o meu trabalho e dirijo-me para a porta em frente do meu quarto, entro e no meu estilo americanizado apresento-me de mão simpática ao senhor que está sentado na poltrona principal.

– Muito boa noite, o meu nome é Natércia, uma das artistas em residência, como está?

E ouço:

– Boa noite, eu sou D. Renato I, Príncipe da Pontinha, e não sou artista, mas tenho sangue azul.

Incauta como sou, respondo de imediato que o meu é vermelho e corre fluido.

O senhor gostou da informalidade e de imediato explica-me a história do seu micro país. Desde a aquisição aos Ingleses em 2000 por 45 mil euros, até à disputa que mantém com o Governo Português pela autonomia do seu território o enredo adensa-se e eu fascino-me pelas suas palavras. O senhor D. Renato I, Soberano da Casa Real do principado da Pontinha, também é professor de liceu, algures no Funchal porque no principado não existem habitações nem habitantes, só turistas que sobem o rochedo localizado junto ao porto do Funchal.

Estou extasiada com a conversa. De cada vez que ele me fala da Pontinha, só me lembro das minhas corridas matinais entre o Lumiar e Carnide, e do dia em que me excedi avançando pelo bairro Padre Cruz perdendo-me na Pontinha de tal forma que, ao sabor do ridículo da calça de licra, tive de apanhar o metro para voltar a casa.

Diz-me que teme represálias do Governo Português, que já sentiu a vida em risco por razões políticas, e eu penso nas minhas viagens pelo Sahara Ocidental. No dia em que estive em Samara e me aproximei de Tindouf, onde a frente Polisário está em cada olhar, e eu pela primeira vez, coloquei um Hijab a cobrir a minha cabeça por forma a passar o controlo de passaportes sem muitos sobressaltos.

D. Renato I apercebe-se intuitivamente da minha agitação e declara-me convidada especial do seu país. No próximo evento musical com o DJ do momento, devo ir sem medos e sem passaporte, pois diz que sou bem-vinda sem demoras nem burocracias alfandegárias.

Sinto-me lisonjeada e feliz, despeço-me de forma polida e volto para o meu vórtice de trabalho no quarto ao lado. Com os fios de samaúma trazidos de Marrakech e os flocos brancos de fibra que apanhei nos algodoeiros do Funchal vou construindo a minha escultura site specific na Pedra Sina.

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