Para Herberto, meu mestre
"…Não sei o que vai ser da minha vida,
Tão cara, Deus meu, que está a morte,
Porque já me não fiam nada onde comprava tudo…"
Herberto Helder, falecido este ano (março de 2015), foi um dos maiores poetas do séc. XX, assim como Fernando Pessoa, na primeira metade do século.
Um ano antes de sua morte, publica um dos livros mais crus, viscerais e emocionantes de toda a sua carreira, A morte sem mestre, da Porto Editora.
Neste livro, a cada palavra escrita, o leitor consegue sentir a aproximação e a consciência da morte que tanto acompanhavam os dias do poeta. Herberto, como já tinha feito no livro anterior, Servidões, escreve abraçando os dias que acha que lhe restam, não como um ensinamento de vida, mas, talvez, como um apanhado da mesma, mostrando a tristeza e a vulnerabilidade de uma pessoa consciente da sua finitude.
Diferente da linguagem a que nos foi acostumando nos seus livros desde os inícios dos anos 60 com o primeiro, A colher na boca, em que tanto o rigor ortográfico como o ritmo eram bem visíveis, nesta obra, A morte sem mestre, o poeta escreve de uma forma orgânica, como se a sua escrita acompanhasse os seus dias, cada vez mais curtos e próximos da morte. Foi a partir do livro A faca não corta fogo que o poeta nos acostumou a uma escrita mais profunda, quase a raspar o osso, a fundo, com faca afiada; como se os seus escritos até A morte sem mestre fossem uma preparação para este livro, tão sensorial quanto abstracto.
Tal como para a maioria dos poetas, a insatisfação, o desespero e principalmente o amor e a busca da satisfação são óbvios em cada linha escrita, muitas das vezes suada. Herberto, um exemplo disso, será, para toda a eternidade, marcado pelos seus poemas intemporais.
"Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima – eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram."
Em muitos dos seus poemas, Herberto invoca Deus, questionando-o pelo deus que abandona. Livro único, este, com uma beleza rara que nos consome desde a primeira estrofe, é talvez um dos mais impuros do autor: no primeiro poema do livro o poeta escreve: "…peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou sentido/ seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro".
Bruto, pleno, belo, é assim este livro.