Fotografia de capa: António Caramelo.
Inspirados pela mitologia associada ao número três e respectiva materialização geométrica a Umbigo não quis deixar passar a oportunidade de se associar ao Milhões de Festa e com isto dar início a uma tríptico em que mais do que dar a conhecer as bandas que irão tocar na edição deste ano, pretende-se descobrir outras facetas de um festival que se quer cada vez mais abrangente. Melhor início será difícil. A Novela Pornográfica como mote para uma entrevista ao seu autor – Xavier Almeida – e uma conversa que sob a capa de mamas e pilas empurra-nos para questões bem mais pertinentes como a censura/autocensura, os falsos puritanismos e os novos obscurantistas.
Reedição da primeira Novela Pornográfica para este ano de Milhões de Festa
Como surgiu a ideia de fazer a Novela Pornográfica?
A ideia surgiu no Festival. Tinha um caderno de esquiços onde apontava algumas notas, numa espécie de registo diarístico, de reportagem ficcionada. A pornografia serviu como bengala para reforçar o carácter mais hard-core do festival.
Consideras o Milhões hard-core?
Não no sentido musical obviamente. A pornografia acaba por funcionar como uma sátira às pessoas, aos concertos, uma sátira que recai nas próprias bandas, mas também no público que assiste. Este ano quero fazer mais virado para o público, para os organizadores, para os ditos sabedores (os opinion makers).
Excerto da Novela Pornográfica, 2013
Quantas edições tem a Novela Pornográfica?
Esta vai ser a quarta.
Há uma certa tendência para te manteres à parte da organização. Quais as razões?
Começou assim e nunca senti a necessidade desse apoio. Era um conjunto de desenhos meus. Não quer dizer que os mesmos não me apoiem, nomeadamente através de uma banca onde posso expor este trabalho e vendê-lo.
Como é feita a distribuição?
Principalmente em feiras relacionadas com o universo da ilustração e banda desenhada. É uma tiragem muito limitada de 20 a 30 exemplares. A segunda edição foi lançada na net e depois no concerto de Föllakzoid durante o Carnaval de Natal na Casa Independente. Aí acabaram por censurar a exposição por se considerarem uma associação de cariz familiar. Mas a censura é um estímulo - juntamente com um amigo imprimimos 8 t-shirts com os desenhos e houve um momento em que nos colocámos todos lado a lado para que se percebesse a ordem cronológica da Novela.
Exposição das páginas da Novela Pornográfica 2013 em t-shirts na Casa Independente após ter sido censurada pela mesma
Houve mais alguém que se sentisse melindrado com o conteúdo?
Nunca houve problemas com ninguém. Curiosamente houve um elemento dos Fumaça Preta que até ficou incrédulo, no bom sentido, com a mesma.
Há um lado marcadamente cru na Novela, do grafismo ao texto.
Talvez. Não há esquiços, não há rede. Pode até parecer um pouco naife. Neste momento, tenho um conjunto de apontamentos e só depois é que desenho. A única que não foi assim foi a primeira. É caneta e fotocópias. Não há digitalização – cópia directa a preto e branco. A digitalização dá-se a posteriori e só para divulgar no site.
Quando falo do carácter mais naïve não é só de pilas e vaginas que falo. São situações de pornografia, mas pegar nessas situações e na sua linguagem e desmontar o carácter sexista (homem/mulher) das mesmas, com uma linguagem brejeira.
Há uma intencionalidade para lá do carácter mais caricatural?
Sem dúvida. É gozar com o que se passa no Milhões numa visão pessoal. Quem desejo ver retratado e quem não pretendo. Aí estou a fazer já uma primeira selecção. E depois, para o bem e para o mal, há uma chacina social. Mais do que uma sátira ao Festival é uma crítica à sociedade. Quer a linguagem gráfica quer escrita é corrosiva, pretendendo gerar um desconforto a quem a lê. Constranger, sobretudo, uma sociedade que não se deveria sentir ferida com o que vê. Dizemos que somos muito abertos, mas continuamos a ser uma sociedade tacanha, púdica e preconceituosa. Estou-me a marimbar para a sexualidade de alguém, antes de tudo esse alguém é uma pessoa, e eu apenas vejo isso; não tenho medo de criticar alguém porque a sua sexualidade é um posto. Serve para desconstruir essa censura. É muito mais que pissas. E qual o problema de desenhar pissas? Na Roma e Grécia antiga não era criticado, nem se via ninguém desconfortável com isso.
Houve um retrocesso civilizacional?
Não sei. Talvez a herança do catolicismo tenha contribuído para isso, juntamente com o capitalismo, que também se rege muito pelas insinuações católicas e do politicamente correcto. A suposta maioria. Se reparares o capitalismo nunca vai contra nada, gera esta amálgama da maioria, sem cortes. O capitalismo usa o catolicismo como ferramenta.
Lançamento da Novela Pornográfica 2014 na Feira Morta
Quais as tuas referências para a Novela?
Há influências gráficas, mas sobretudo na linguagem socorro-me de uma certa brejeirice. É uma linguagem assumidamente de tasco, mas que é precisamente o outro lado da mesma moeda. É o outro lado da nossa sociedade, mais popular, mas também ela reprimida, que usa a agressividade como protecção, uma linguagem extremamente homofóbica e deslocada da realidade.
A intenção é sempre desmascarar ambos os lados. De uma parte, os “sabidos” que pensam que por se ir a Nova Iorque ou a Helsínquia uma vez podem impor padrões de comportamento. Já reparaste que há medo em se criticar alguns comportamentos associados à cultura homossexual?
A Novela é um manifesto?
Não há essa intenção. Repara que o Marcial é já altamente crítico e sarcástico. Parto-me a rir quando o leio. É descoberta recente, aliás conheci-o através de um amigo que me passou para a mão um conjunto de epigramas traduzidos directamente do latim pelo Alberto Pimenta – repara que estou a ser muito específico para explicar que quase sempre as traduções do Marcial (não apenas em português) são suavizadas e, por isso, uma forma de censura! Aí senti o mesmo que sinto quando faço a Novela. Sou um menino à beira dele. A linguagem dele é muito mais directa, ressabiada. Isso inspira-me para o próximo número, que será mais feroz, mais cáustico, corrosivo, por isso mesmo vai focar-se mais no retrato social do que no musical.
O autor (fotografia de António Caramelo)
Como enquadras a Novela no contexto da tua obra?
Foi logo após a Uma Exposição do Caralho no Laboratório Galeria na Graça. A Novela Pornográfica corresponde à segunda fanzine que editei após o Christiana em 2011. Foram as primeiras edições Do It Yourself. Caderno de autor, independente. A residência em Christiana fez com que tivesse maior consciência de como fazer um objecto, um trabalho acabado. A Novela surge nessa sequência.