NOTAS SOLTAS

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Penso que é de extrema importância assinalar que durante os anos 90, existiu, na Rua dos Arneiros um café conhecido por Badalhoca. O ilustre estabelecimento situava-se numa esquina de rua onde uma senhora de cabelos avermelhados com um vestido de lantejoulas e coxa bem arejada servia a clientela que se reunia ao balcão. A maioria dos seus clientes eram homens, entre eles o senhor agente, cuja conta nunca ultrapassava a meia dúzia de tostões, o que era curioso tendo em conta as bifanas e o punhado de cervejas com que ia enchendo a pança. A madame a puxar o cano da cerveja e o agente a puxar da pistola, fornecendo-lhe todos os detalhes sobre o manuseamento da 6.35. Do outro lado ficávamos nós, em bicos dos pés, a tirar gelados da arca frigorífica enquanto uns sujeitos dispersos assistiam ao motociclismo, acompanhados de um fino a escorrer de suor, com um restinho de espuma a fermentar no copo.

Astutos como raposas seguíamos como não quer a coisa até à extremidade do café, paralelamente ao bófia que procedia à examinação das pernas da mulher, sem saber que ao fundo do estabelecimento duas crianças acediam à sala de jogo. A Badalhoca a retirar o batom que se misturava com a placa e eu o Bruno (companheiro incansável destas andanças), explorando as imediações, de joelhos mascarrados e Calipo na mão, a inserir uma moeda de 50 escudos na máquina do Final Fight.

Dali procedíamos até ao campo de futebol para uma jogatana contra os toxicodependentes. Logo após o aquecimento, nós a aquecermos os músculos e eles a aquecerem as colheres, a picarem-se, transformando-se em verdadeiros mestres de comédia de fazer inveja a Louis de Funès, com pontapés na atmosfera e quedas no asfalto, cheios de tiques de paranóia, a retirarem a droga das meias e a montarem o boteco da desgraça em cima do muro.

Benfica era um microcosmos estranhíssimo, tão distante dessa Europa moderna, de um lado um vizinho de chinelos a passear o cão, executando manobras com uma trela extensível, do outro, um rapaz a apalpar a namorada, os drogados a secar ao sol e nós a assistir àquilo tudo, a chutar o esférico contra o muro, a minha mãe a gritar da janela,
– Anda para cima ! – e eu a descascar as crostas dos joelhos,
– Só mais 5 minutos! – até que a bola desaparecesse nas ortigas e eu com um receio enorme de me picar nessas seringas ocultas, a pensar na SIDA, no que ainda me restava para viver, privando-me da água do chafariz, essa fonte de hidratação proibida onde os drogados lavavam as seringas, com a vista turva de alucinações e o esqueleto encharcado de suores, numa espécie de realidade paralela a que apenas eles tinham acesso, exibindo os torsos à Salvador Dali oscilando entre a hiperatividade e uma quietude sonolenta.

Se de facto nunca espetei uma seringa nas veias foi certamente por falta de interesse e por cobardia, claro. Ao fim e ao cabo não deve ser nada fácil, houve até uns quantos que perderam a vida e outros que reapareceriam mais tarde, gordos e curados, vindos dessas clínicas no Alentejo profundo, longe da cidade e igualmente longe dessa Europa moderna.

Foram estas algumas das liberdades do pós-25 de Abril. Liberdades que se foram gastando nestas coisas, uns na droga e outros (como eu) numa mão cheia de eucaliptos e num saco de berlindes com um abafador, comprados a um senhor que tinha um olho cego, muito amável, na drogaria da Cláudio Nunes.

Vá, agarra numa caixinha, fazemos-lhe um furo e vamos pedir para o Santo António, voltamos a ser miúdos e jogaremos à Sirumba no meio da praceta, a melhor praceta do mundo onde passará a coruja branca, oriunda (no nosso pensamento infantil) de um desses países nórdicos cobertos de neve, presenteando-nos com o seu voo rasante e a sua aparição rara.
Mas de que raio estou eu a falar? Foi há tanto tempo,
– Olha, se fores à rua traz-me um Calipo.
– Um Calipo?
– Sim, um Calipo. Aliás, pensando bem não te incomodes que já lhe tenho o gosto na boca – e com isto parece-me que é tempo de abandonar este texto, deixando Benfica onde está, sem graça nenhuma, meu velho paraíso de subúrbio.

GalopantesAnos90-2

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