NOTAS SOLTAS

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Antes de julgarmos o Ulisses seja como for, um cleptomaníaco ou vulgar ladrão, devemos aprofundar as suas motivações íntimas e perceber qual será o seu juízo sobre essa matéria. É verdade que Ulisses furta livros portanto ele não se livra da acusação de ser um vulgar ladrão com facilidade. Pode ser um ladrão, mas como diria Woody Allen essa será apenas a definição que consta no dicionário. Ulisses considera-se um “bandido das letras”, se furta e é um bandido, não o faz por compulsão mórbida. Daqui podemos dar, pelo menos, o benefício da dúvida se será um cleptómano. Ele não rouba outros itens das prateleiras, só furta livros: nada mais. E fá-lo porque tem um desígnio.

Vejamos quais foram as circunstâncias que o conduziram a este desígnio. Ulisses começou a esboçar uma lista, juntou um conjunto de autores prediletos, depois alinhavou lentamente os títulos seletos. A lista cresceu com avanços e recuos, com adições e subtrações. Os livros que cumprem os requisitos iam sendo adicionados, e podiam ser excluídos posteriormente porque novos acrescentos não combinavam bem com anteriores somas, como se os critérios fossem fluidos, mudando ao sabor das novas aquisições. Qualquer biblioteca pessoal sofre com o humor do seu principal leitor. Esta lista pessoalíssima chegou às centenas de exemplares. Ulisses inicialmente percebeu que adquirir todos estes livros seria certamente oneroso. Os livros no século XXI continuam a ser caros. No entanto, se Ulisses é um tipo razoavelmente honesto, não pode atribuir ao preço dos livros a razão destes serem furtados. Afinal, Ulisses, com algum esforço financeiro, poderia compor a sua biblioteca íntima exclusivamente com o seu labor.

Os “golpes” – designação do próprio Ulisses para os seus furtos – devem-se a motivações tão íntimas como as escolhas dos exemplares que compõem a designada lista. O motivo de furtar não se prende com a impossibilidade de pagar pelos livros. As suas motivações são menos superficiais que essas, não são de todo materialistas. Ulisses furta porque encara os “golpes” como um ato de coragem, uma questão de princípio e um modo de vincar a sua individualidade. O leitor pode interpretar cada uma destas razões como espúrias mas digamos efetivamente que para Ulisses não eram de todo.

Ele tem amor pelos livros e transgredir as normas é uma forma de manifestar este amor. Um amor tão forte que justificava o risco. Depois havia aqui também uma espécie de validação da sua coragem. Se ele era capaz de realizar recorrentemente uma proeza que envolve uma pequena dose de risco, era porque ele seria corajoso, esta subtil constatação era muito importante para si. Quem o conhecia, se soubesse que furtava livros como fosse um vulgar ladrão, desconfiaria da verdade, duvidaria que tal pudesse sequer acontecer. Ulisses tinha uma natureza cordata e decente, era um tipo até um pouco tímido, no trabalho era reconhecido pelo seu zelo e dedicação. Ulisses tinha tudo para ser considerado confiável e nada para ser um bandido. Furtar livros era assim uma forma de dizer para si próprio: eu sou o que eu quiser.

Com o tempo surgiu uma outra razão, relacionada com a coragem de ser um bandido. Uma razão importante para continuar a compor a sua biblioteca por estes meios. Ulisses via nos seus atos algo de intrinsecamente bom, mesmo que só pudesse aperceber-se disto de viés. Havia algo de superior nos seus atos, uma bondade imprescrutável mas real. Sentia-se grandioso e estava a fazer algo de benemérito, mesmo que não pudesse indentificar exatamente onde estaria a benevolência dos seus “golpes”.

Apesar de todas estas considerações, Ulisses media as consequências. Não no sentido em que a sua reputação estivesse em causa. Nunca pensou seriamente na sua reputação ou no facto de poder ser punido pelos seus atos. Preocupava-se antes com aqueles que poderiam sair prejudicados e as suas preocupações eram genuínas. Dizia para si mesmo: é verdade que haverá consequências mas estas são insignificantes, existem seguros para estas perdas, o prejuízo não calha individualmente a ninguém, não há nenhuma pessoa que fique individualmente prejudicada com isto. A sua principal questão é que ninguém em particular sofreria danos com as suas ações. Estas meditações apaziguavam o seu espírito o que possibilitava seguir em frente com mais um dos seus golpes.

Apesar de Ulisses não poder ser considerado um cleptomaníaco, os seus golpes, com o tempo, tinham adquirido uma tendência exuberante – o efeito traquinice. Cada vez que furtava um livro, a adrenalina na sua corrente sanguínea subia fervorosamente. Logo que saia da livraria a sua pulsação cardíaca disparava. Era tão forte esta sensação que Ulisses confessava para si mesmo que esta era uma razão forte para continuar os “golpes”. Não que com isto ficasse desleixado. O seu rigor em cada golpe era cada vez mais exemplar e só deixava-se levar pelas sensações quando estava seguro no exterior dos estabelecimentos. Agia sempre com cuidado, sem medo mas cauteloso. E sentia que a cada vez que furtava estava cada vez mais eficaz naquilo que fazia. A cada vez era capaz de ser mais veloz e eficiente. Já conhecia inclusive todos os funcionários das livrarias, sabia do modo como estes estavam atentos ao seu trabalho, deste modo iludi-los tornava-se cada vez mais corriqueiro. Algo que mexia com o ego de Ulisses, digamos. Ser bandido por si só servia para uma satisfação muito peculiar. Ulisses sentia orgulho por ser bandido, talvez menos do que por ser das letras. Havia na palavra “bandido” algo de nobre e bom. Este sentimento seria uma forma de insurgir-se com as grandes injustiças do mundo, Ulisses assim começou a imaginar-se como um herói, alguém que pudesse ser admirado e louvado.

Estas considerações eram pertinentes nos dias dos "golpes", havia toda uma preparação emocional para cada furto. Ulisses precisava de reforçar a sua motivação, precisava de estar concentrado, focado nos seus objetivos, tinha de ter todos os sentidos apurados, e os nervos relaxados. Quando, finalmente, sentia-se pronto, pegava no seu casaco e deslocava-se para a livraria escolhida de acordo com um esquema. Ele nunca usava duas vezes consecutivas os casacos nos seus "golpes", escolhia bem a hora do golpe, geralmente, durante a hora de almoço ou de jantar dos funcionários. Ia de carro até às imediações da livraria. Estudava o terreno antes de avançar, analisando o perfil de todos os presentes na livraria. Estando pronto, começava o "golpe" propriamente dito.

Cada "golpe" tinha um alvo pré-estabelecido, obviamente um exemplar que constava da lista. Ele deambulava pela livraria até encontrar pela sua mão o alvo. Depois começava a folheá-lo lentamente, página a página, até deparar-se com a banda magnética. Depois de encontrá-la observava em redor para ver se havia alguma desconfiança perante os seus gestos. Depois olhava para as câmaras e colocava-se num ponto em que a video-vigilância não o capturasse em falso. Por fim, colocava o livro num bolso especialmente cerzido para o efeito. Tirava o casaco, segurando-o com a mão esquerda e saía da loja como se nada fosse.

Desta vez aconteceu um imprevisto. Não, o seu "golpe" não foi apreendido. Não foi admoestado por um funcionário. Não aconteceu nada que pudesse manchar a sua imaculada reputação. O que aconteceu foi não sentir o forte abalo da adrenalina. Demorou a perceber a razão disto até chegar à contradição, o livro intitula-se Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Emanuel Kant, um livro sobre ética e dever moral. Ulisses conhecia o seu conteúdo, tinha lido o livro na juventude e o peso da contradição com a ética alinhavada naquele livro era imenso, sendo sentida como incomensurável logo que atravessou os sensores da livraria.

Havia algo de errado e penoso ao carregar este livro para casa, como se uma força invisível estivesse a desvanecer toda a sua vitalidade. Nenhumas das suas meditações sobre a insignificância moral dos seus furtos alcançaram o apaziguamento da sua consciência. Percebeu que estava numa contradição moral. Sentiu-se mal, com um enjoo ético. O prazer de roubar esfumou-se completamente para dar lugar a uma disforia.

Se não tinha prazer nisso, mais valia não continuar. Nunca mais roubou. Mas isto teve uma outra consequência inesperada, dali em diante sentia que a sua consciência tinha sido avassalada pela ética, a moralidade daquele livro impôs-se como uma coação. A restante biblioteca foi sendo composta de forma legítima e sem que fosse possível uma repreensão moral. Não voltou a ter o prazer de roubar e ser um bandido. Pode ser trivial. Nunca perdoou Emanuel Kant por adotar um comportamento moral.

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