Em que a arte foi um "filtro da vida"
Presto aqui uma simples homenagem em memória do seu desaparecimento entre nós. Foi uma personalidade complexa, de grande versatilidade, original no plano interventivo que nos deixou uma obra precoce, singular e de vanguarda sobretudo na vertente da arte performativa onde o corpo ocupava um lugar central. Ana Hatherly é considerada um dos nomes pioneiros, cruzando diferentes expressões artísticas, numa multiplicidade de suportes híbridos desde as letras, às artes plásticas e ao cinema. Mesmo nas suas composições visuais de (des)colagens, a escrita está sempre presente. Na série de imagens em vídeo e composições de cartazes Les Rues de Lisbonne, documentos únicos que fazem parte do acervo da Colecção Gulbenkian recentemente expostos no CAM, são caracterizados por uma poetização urbana muito forte e foram realizados num ciclo pertencente ao período pós-revolucionário.
Quanto ao seu historial é de referir que foi durante o Outono de 1977 que a artista descolou das paredes, fragmentos de placards, na sua maioria de natureza política, feitos num gesto performativo do rasgamento muito ao seu gosto, numa espécie de reencenação da cidade que nos é devolvida. Nestes cartazes é reveladora essa tendência onde o texto surge em composições livremente elaboradas. As suas formas descontínuas, são de palavras e imagens amputadas remetendo para uma tradição da Arte do Século XX, que inclui referências importantes de artistas como as colagens cubistas de Picasso, os quadros de Merz de K. Schwitters, e as découpages dos nouveaux réalistes Mimmo Rotella. Nestas peças, sente-se a figura de A. Hatherly com o seu permanente estado de entusiasmo no espaço urbano, a sua intensa sensibilidade criativa como da audácia e dimensão. Estas imagens brotam numa dinâmica própria em fracções de fragmentos de rua segmentados como se existissem espontaneamente. Denota-se uma expressividade pictórica singular obtida numa lógica da colagem, tendo sido substituída na sua pureza quanto à matéria visual e verbal sobre acumulação de acasos, pelo gesto alheio do colar e rasgar. Neste contexto, a arte já não é sinónimo de produção de um determinado objecto mas sim produto de um conceito que aponta sobretudo para a mais vasta e profunda forma de comunicação/intervenção.
"A cada um só resta o seu próprio voo solitário" (A. Hatherly)
O filme Rotura funciona como uma instalação performativa, apresentada na Galeria Quadrum, de grande impacto envolvido num clima de grande tensão datado do mesmo ano dos cartazes. Esta obra que possui uma elevada densidade em que a artista, fotografada e filmada, se apresentava de camisa de flanela aos quadrados e boina (misturando numa representação da imagem de dois clichés: o do pintor e o do revolucionário português); rasgando com facas, acção com alguma violência, as folhas de papel de cenário branco como se tivesse uma aversão não ao papel branco mas ao papel em branco. O som surge de forma poderosa, onde a própria autora ficou surpreendida com o resultado final. Dada a altura dos painéis a Ana tinha de estar em cima de um escadote para executar o trabalho; tendo o público ficado exausto após assistir ao acto criativo na sua génese ao nascer a obra de arte, o que raramente lhe é permitido, surgindo numa luta com o próprio material.
A. Hatherly possui um percurso muito particular onde tentou criar nas suas obras visuais uma interpenetração numa relação seguramente estreita e amistosa entre a imagem e o texto onde a criação no seu mundo imaginário conciliou as artes plásticas com o universo literário. Este processo permitia por um lado tornar visível a escrita e o desenho por outro em que as suas fronteiras se foram tornando cada vez mais difusas, não sendo evidente definir com precisão onde começa e acaba cada um destes domínios. Como dizia a criadora: "Eu sou um pintor da palavra. Estou sempre ligada à escrita e por isso tenho a escrita dentro da pintura. O que as pessoas não se dão conta é que a escrita é uma forma de desenho". É uma procura do indizível. Nos dias de hoje, essa forma de transmitir a comunicação é recorrente, mas na época rareava. "O meu trabalho começa com a escrita que deriva para as artes visuais através da experimentação com a palavra", através de um processo de consciencialização dos laços que unem todas as artes. Assumiu uma marginalidade que foi necessária à sua obra e foi rebelde até ao fim.
Interessou-lhe aprofundar o que é o mistério da criatividade. "O que se cria e como se cria. É um acto sagrado. Não escrevo para dizer, para dizer o que não pode ser dito. Mas o que não pode ser dito pode ser mostrado". Para esta autora, em arte a realidade verdadeiramente possível é a que nós inventamos.