DIÁRIOS DO UMBIGO

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Mais uma vez, trago-vos a poesia da luz como ponto essencial desta análise. Encontramos e entramos aqui numa nova dimensão, intencionalmente escolhida tanto pelo realizador como pela diretora de fotografia.

Diz-se que uma boa fotografia é aquela que nos leva além, além do óbvio e além da nossa própria imaginação, há uma espécie de expansão daquilo que vemos e ,essencialmente, uma expansão daquilo que sentimos.

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Esta dita expansão ou prolongamento do imaginário, quer ele real e/ou sentimental verificou-se no filme The Neon Demon escolhido para a análise de hoje. É um filme que estreou em Portugal em agosto passado, e é a mais recente obra do realizador dinamarquês Nicolas Refn.

Um filme com diversas peculiaridades, começando pelo facto da cinematografia ser assinada no feminino, Natasha Braier rubrica, e bem, a Direção de Fotografia do filme. É curioso, já que só 6% da direção de fotografia mundial é assinada por mulheres, é uma área quase que exclusivamente masculina, mas cada vez mais vai sofrendo modificações e ajustes, mudando um pouco este conceito. Como tal, existem brilhantes Diretoras de Fotografia como por exemplo Rachel Morrison, Reed Morano, Ellen Kuras, Autumn Durald, Charlotte Christensen, Caroline Champetier, Maya Bankovic entre muitas outras…

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A Diretora de Fotografia, Natacha Braier, é conhecida pelas inúmeras curtas-metragens em que assina o seu nome, mas também é ilustre pela fotografia de algumas longas metragens, como é o caso de The Neon Demon, XXY entre outros.

Nos seus filmes deteto uma espécie de assinatura fotográfica, um tipo de dualidade que fica entre a suavidade/fragilidade do ser humano, e outra que leva ao lado mais perigoso da figura humana. Este jogo de luzes e sombras, também se encontra bem presente ao longo deste filme.

À partida entendemos pelo título do filme, que vai haver uma utilização de diferentes formas de luz, que irão personificar/caracterizar a personagem principal. Henri Cartier-Bresson descreve numa frase toda a essência da fotografia, que também se aplica à cinematografia, já que ambas têm como instrumento a luz. "It is an illusion that photos are made with the camera… they are made with the eye, heart and head."

É nesta mesma teia da ilusão em que o filme se inicia, a ilusão do olhos, do coração e da cabeça. De forma a contextualizar a utilização da luz ao longo da narrativa, começo por contar alguns fragmentos essenciais dos três atos da narrativa.

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O filme narra a vida de Jesse, interpretada pela atriz Elle Fanning, uma jovem de 16 anos recém chegada a Los Angeles, com o objetivo de iniciar a sua vida no mundo da moda. Hollywood não é um mundo propriamente fácil e inocente, muito pelo contrário, é mundo manipulativo, de vencedores e perdedores, de competição e interesses. O filme nos seus três atos, relata a passagem emocional e física de Jesse, cruzando-se com diferentes personagens que a fazem ser, cada vez menos ingénua.

O filme inicia-se com um plano de Jesse deitada num sofá, as cores e a formas do plano, sugerem que exista algo de artificial, os planos são demorados, e os movimentos de câmara são suaves, permanecemos ali durante algum tempo, começando por aceitá-lo. Mais tarde percebemos que aquilo trata-se de uma sessão fotográfica, sugerida pelos flash da máquina fotográfica. De certa forma estes primeiros minutos do filme, descrevem bem o mundo da moda, que vai sendo relatado ao longo do filme, um mundo produzido, pensado, mas ao mesmo tempo apresenta artificialismos e deixa-nos iludidos por dentro e por fora.

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Natacha Braier através da utilização da cor e da luz, neste primeiro momento da narrativa, agarra completamente o espetador, que fica visualmente expectante pelo que virá a acontecer. Parece que a luz representa o vislumbre interior da ambição de Jesse, dos sonhos dela, tudo bastante saturado, com bastante chroma, muito bem contrastado e de certa forma irreal.

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O movimento de câmera travelling out, sugere que alguém a observa, encontramos aqui dualismos entre a imagem colorida onde Jesse está, e a imagem mais escura e mais real, sem artificialismos, onde o fotógrafo se encontra. Dean é interpretado por Karl Glusman, ator que foi personagem principal no filme de Gaspar Noé, Love.

A partir deste momento do filme começamos a reparar na utilização de cores cada vez mais fortes e altamente artificiais, esta luz representa a estética escolhida para descrever o filme. As cores altamente saturadas evidenciam a ambição desmedida de Jesse e a ambição extravagante da indústria. Conforme as sensações e fases emocionais passam por Jesse a cor muda, contrasta e satura.

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Um exemplo desta mudança de cor, e luz, esta na cena em que Jesse encontra-se numa saída noturna, e se cruza com o trio, onde Jena Malone interpreta a maquilhadora Ruby, e Abby Lee e Bella Heathcote representam as duas modelos Gigi e Sarah. Esta saída representa a tal mudança de ambiente e de luz. Quando elas estão as 4 no WC, a luz é artificial, contrastada, colorida, representa a excentricidade da mente humana, já no exterior a luz deixa de ser tudo isto, e passa a ser uma luz branca, que varia entre o total negro e pequenos flashes onde as personagens aparecem. Tal como a cinematografia aqui representada, Jesse também não vê tudo, vê pequenos fragmentos das personalidades do trio, e naturalmente apresenta uma aproximação a Ruby. Esta aproximação nota-se constantemente pela composição das personagens em plano.

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Normalmente a luz natural surge quando ela está no seu próprio elemento, quando Jesse é ela própria, uma jovem inocente, inofensiva, delicada e introvertida. A noite e o artificial surgem quando à uma pretensão, uma vontade , um desejo por ser bem sucedida.

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Também vemos a utilização combinada destes dois mundos, ou seja, quando Jesse ainda é inocente e delicada e é representada pela luz do dia, mas um dia já a anoitecer, onde a ambição está prestes a chegar e tomar conta dela na sua totalidade. Esta perda da luz do dia e também a perda da sua inocência é também nos dada pela conversa que tem com Dean sobre a sua entrada na nova agência.

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Percebemos pelos planos do carro, que a maioria deles do ponto de vista da composição e enquadramento são bastante semelhantes ao filme Drive do mesmo realizador. A luz nesta cena é tão subtil, difusa, e ao mesmo tempo contrastada, representa alguma pureza e a sensação de sonhar acordado, típica no início de uma relação.

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A dinâmica de luz modifica-se de luz mais fria para luz mais quente, a luz mais fria aparece normalmente quando Jesse está envolvida na moda, ou com assuntos que a façam se aproximar daquele mundo. A luz mais quente aparece normalmente com a luz do dia, onde ela tem tempo para ser a menina de 16 anos fora de toda simulação ousada do mundo de Hollywood.

A utilização de luz de noite mais contrastada, de planos fixos e de composições mais trabalhadas simboliza de certa forma um sentimento de solidão e apreensão pelo mundo. Numa dessas cenas aparece a personagem Hank, interpretada por Keanu Reeves, que interpretou um pequeno papel. Torna-se a figura disforme e desconfiada do Motel onde Jesse habita em LA. Tem como função destabilizar um pouco o mundo de Jesse, faz uma espécie de Norman Bates, do Bates Motel do filme Psico de Hitchcook.

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Outro fator muito importante no filme são os enquadramentos, que muitas das vezes assumem linhas e formas geométricas. É uma forma bastante inteligente de representar um mundo altamente apurado, delineado em que deixa o espetador se perder num universo de formas e de significâncias, tal como o mundo da moda.

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Este é um filme apresenta diversas referências, há cena que me faz lembrar um híbrido entre American Beauty e Trainspotting, quando Jesse abre a porta recebe o ramo de rosas de Dean, e cai no chão, chão este que também têm, curiosamente, um tapete vermelho e umas pétalas em seu redor. Aqui a música de Cliff Martinez e a imagem de Natacha Braier transportam o espetador para um universo muito diferente da realidade, a realidade descreve a dor de Jesse, mas ficamos utopicamente a viajar com Jesse pelo seu inconsciente a dentro. Esta viagem pelo inconsciente é a mesma viagem que Renton faz no filme Trainspotting quando é absorvido para dentro do tapete. Esta sensação é nos dada não só pelo plano fixo e demorado que ajuda o espetador a fixar também uma ideia ou sensação, mas também pela utilização dos planos seguintes, usa mais uma vez uma figura geométrica, e o seguinte plano que mostra o uso da espessura da parede como símbolo de uma realidade inconsciente.

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A composição da imagem é um ponto bastante curioso no filme, já que a usa de forma muito astuta. A composição normalmente é equilibrada e muitas das vezes assimétrica. Este tipo de composição bem planeada, traz a sensação que as personagens estão interligadas, e que se unem em muitos pontos. Reparei também na utilização constante de espelhos para formar a composição desejada para o plano, a constante utilização de espelhos é quase uma auto caracterização do mundo da moda, onde existe a pessoa e no espelho existe um ego. O que é o mundo da moda sem espelhos, sem as reflexões daqueles que vêm e daqueles que a compram. Os espelhos também expõem a uma constante realidade que está sempre alguém a observar-te numa ou noutra perspetiva.

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A transformação da personagem de Jesse começa no segundo ato da narrativa, quando ela é escolhida para desfilar na passarele, e entra-se no local onde decorre o desfile. É nesta mesma parte que a personagem de Elle Fannig perde toda a inocência, é invadida por um ego excêntrico. A cor muda de um azul para vermelho, uma trágica mudança da utilização das cores, que serve como marca para a transformação psicológica da personagem principal.

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É discutida a questão de que a ‘Beauty is everything’, é também perguntado a Jesse se era mesmo isto que ela queria, se era neste mundo onde ela queria viver. A questão da personalidade dela estar-se a moldar, embora ela ache que não virá a ser igual a eles, mas sim eles queiram ser ela. E a partir do momento em que percebe o seu poder, também ela entra dentro de um universo manipulativo e atrofiante.

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A constante utilização de silhuetas surge algumas vezes durante o filme, uma das cenas onde ela encosta o ouvido à parede para ouvir o que se passa no quarto ao lado, entra mais uma vez num hemisfério entre o consciente e o inconsciente. O consciente é nos dado pelo som, o inconsciente é nos dado pela imagem como se fosse uma figura embrionária, o movimento de câmara de travelling out , em que se afasta lentamente da parede e a deixa ficar cada vez mais pequena perdida no meio de uma sala escura, representam em certa forma a maneira como ela se vê, sem ninguém para a proteger dos perigos.

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Jesse muda-se para casa de Ruby e neste mesmo momento que começa o terceiro ato da narrativa. Nesta parte Jesse deixa de ser caracterizada com luz delicada , mas passa a ter mais contrastes e mais uma vez cores saturadas, azuis muito intensos, verdes muito acentuados. Esta mudança supõe que alguma se vai alterar na narrativa.

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O filme passa a ser todo ele um pouco mórbido, necrológico e de certa forma perturbador.

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A última cena passa-se em plena luz do dia, tenta-se esconder a realidade e o crime cometido pelo trio, escondem-se por trás dos cabelos e da maquilhagem e da roupa, mas por dentro perderam a liberdade, a consciência. Na parte final, a luz dita uma linha vermelha por cima das testas das duas modelos, será a culpa ou será a inconsciência, provavelmente não será nenhuma das duas. Já que é um filme que esta aberto a diversas interpretações.

O filme acaba entre figuras geométricas e um espaço vazio, isto dá muito que pensar no significado da vida, e dos objetivos e expectativas que temos para ela. Será que vale a pena?

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Em síntese o realizador, a diretora de fotografia e a direção de arte, trabalharam muito bem, em plena sintonia e harmonia. Só pela luz e pela cor, já para não falar da música, já vale a pena ver o filme. É um filme que convida o espetador a entrar pela porta principal, apresenta um ambiente hiperestilizado, com uma estética imponente e penetrante. A estética aqui provavelmente é tão marcante como a existência de um ou mais egos em cada uma das pessoas.

O filme fala sobre beleza, como disse Refn em várias entrevistas, a sua narrativa tem como objetivo representar essa superficialidade. Uma narrativa mais plástica e frívola existe para que se entenda que provavelmente o ego constrói-se e destrói-se sobre pensamentos e emoções baseados em interpretações do real e do irreal. O ego muitas das vezes é imaginário, ilusório , que se ilude e desilude de forma tão breve e rápida. O filme, também ele, pretende ser a passagem breve pela vida de Jesse, não esquecendo nunca que a profundidade esta na superfície, e é na superfície que a maioria das coisas do quotidiano acontecem. O tempo é que torna as coisas mais profundas ou menos profundas, variando de pessoa para pessoa.

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Este filme foi alvo de várias críticas dizendo-se que isto não é cinema, mas a verdade é que se gostando ou não da narrativa deste filme, o filme estabelece uma experiência, seja a experiência passada pela personagem principal, seja a experiência interpretada pelo espetador.

Ao longo do filme experienciamos vários estados emocionais, várias formas de ver a mesma realidade e isto também é uma forma de fazer cinema.

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É um filme com uma narrativa que em parte se assemelha a Lynch, uma cor que se relaciona ao filme Suspiria de Dario Argento, apresenta uma polémica como nos filmes de Lars Von Trier. Refn não é nenhum destes realizadores, nem tem que ser, os seus filmes marcam sempre uma linha que fica entre a sedução, a introspeção e o atrevimento.

É um filme translunar, que atravessa a linha imaginária de muitos espetadores, torna-se a hipérbole da vida de Jesse, e de muitas outras jovens adolescentes à procura de um mesmo sonho. Tem uma estética distinta e marcante, muito própria, comum em muitos dos filmes do realizador de Driver e Only God Forgives. Em todos estes filmes vemos a utilização brilhante da luz, cor e dos enquadramentos.

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Nunca esquecendo que Refn é daltónico, por isso ele não vê a cor dos seus filmes, vê sim contrastes entre tons claros e escuros. Não deixa de ser um facto curioso, que o espetador veja algo diferente em relação ao que o Realizador vê, do ponto de vista cromático. São este conjunto de pormenores que tornam o filme tão apelativo ao olho, aproximando a sua fotografia a outras artes, artes plásticas, videoclips, tendo em conta que apresenta uma supervisão e crítica em relação ao conceito de beleza. Esta dicotomia entre a realidade e a ilusão manifesta-se de forma controversa na luz e na cor, mostra um sensualismo inocente que gira à volta dos filme de NWR.

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