Fotografias de capa: Remains, video, 2013.
Em Willie Doherty a permanente tensão entre dois mundos repete-se "Uma e Outra Vez"
Neste período de intensos acontecimentos perturbadores convido-vos a visitar a Exposição no CAM, de carácter antológico com a curadoria de Isabel Carlos, de um artista visual irlandês pouco conhecido em Portugal dentro de um universo peculiar e singular.
Os meios preferenciais da sua produção desenvolvem-se em torno de dois suportes que se interligam: a fotografia e o vídeo, explorando também o formato da instalação. A mostra de Willie Doherty abrange trabalhos mais recentes não deixando de figurar obras de fases mais antigas. Este exercício expositivo foi intencional justificando o seu critério pelo facto de a escolha das temáticas exploradas por parte do artista prosseguirem posteriormente com o mesmo referencial, tornando-se no seu motor inspirativo numa permanente repetição. Duas dessas peças mais recuadas no tempo foram concebidas com projecção de slides Same Difference e They’re All the Same e abordam o tratamento dos media ao IRA a partir da forma como os seus membros são tratados. Interessava-me esta temática na altura, referiu o artista.
As palavras e os textos surgem intensamente num discurso diferente e paralelo ao da imagem. Em Same Difference foram seleccionadas palavras-chave: Heroic, Mythical, Volunteer, Murderer e Tempestuous, que são inscritas de forma incisiva por cima da imagem de um rosto feminino, lembrando imagens de ficheiros de arquivo. Uma das marcas da sua autoria mais forte consiste na não/relação entre a palavra e a imagem, portanto constrói dois tipos de narrativas a visual e a literária que não se aproximam no discurso uma da outra.
"Uma fronteira invisível ao nível da percepção". Isabel Carlos
Em ambos os trabalhos encontra-se a figuração humana, no primeiro representado por uma imagem feminina e no outro, o de um ser masculino de um olhar anestesiado ouvindo-se um texto repetido como se se tratasse de uma oração. Os rostos em grande plano são convertidos em expressões severas com traços de extrema dureza.
A presença humana encontra-se sempre presente como fio condutor como é particularmente evidenciado na encenação de uma personagem a solo no vídeo The Amnesiac. Noutras situações existe uma figuração que se encontra apenas sugestionada, destituída do corpo através de sinais da sua presença inquietante como um saco-cama por cima de uma pedra, um capô enferrujado de um automóvel ou restos de queimadas. Esses elementos são envolvidos em atmosferas de paisagens verdejantes, florestas densas numa tendência bucólica e nostálgica de um resultado plástico bem cuidado. A natureza fala connosco, respira intensamente tornando-se quase como um corpo em que o ser humano se integra e se confunde com ela.
Filma, fotografa e capta igualmente vestígios de lixos urbanos abandonados em espaços indefinidos. Contudo, existe uma tensão interiorizada que paira no ar como é revelador no vídeo Passage onde duas figuras masculinas seguem um percurso em sentido contrário num jogo conseguido em permanente alternância, seguindo linhas opostas até chegar o momento crucial de se cruzarem, o ponto auge, onde cada um olha para o outro de soslaio e seguem o seu caminho sem que nada se passe visivelmente, como se estivesse algo prestes a acontecer mas inesperadamente nada se passa. Essa tensão pode significar uma relação com a sua experiência pessoal do conflito entre as duas Irlandas o Norte e o Sul, entre protestantes e católicos, entre vítimas e agressores. Aliás, muitos dos seus trabalhos estão associados à sua terra natal, Derry, a segunda cidade maior da Irlanda do Norte, palco de intensos conflitos durante mais de trinta anos, desde o Domingo Sangrento em 1972.
No vídeo Ghost Story é realçado um caminho que parece interminável e não ter fim, podendo evocar a cidade de Derry que é atravessada por um rio que separa as duas margens. A câmara de filmar acompanha lenta e repetidamente o andamento do ser humano como se fossemos nós a percorrê-lo, podendo representar a estrada da vida. A sua criação traduz desta forma uma permanente dualidade numa dicotomia, atravessada no seu pensamento instável, no limiar de uma fronteira tanto no plano conceptual como geográfico e político. Nele existem dois lados, duas margens de um rio ou as bermas da estrada separadas por um caminho, dois olhares sem ter que estar em nenhum deles.
Em síntese é um universo que reflecte sobre a própria condição humana. Willie Doherty (n.1959) é um dos criadores influentes que se distingue na contemporaneidade, tendo sido seleccionado para o Prémio Turner Prize em 94 e 2003; representou o seu país na Bienal de Veneza em 1993 e em 2007; esteve presente na Bienal de S. Paulo em 2003 e participou na 13ª Documenta de Kassel.