Fotografias: Vera Marmelo (Out.Fest).
419 – 420. 419 – 420. 419 – 420. 419 – 420. A sucessão de dois números debaixo de uma fotografia de uma mulher a preto e branco. Um bilhete de transportes? Um registo de identificação? As milhas percorridas de sul para norte? Sucessão de imagens de arquivo, e que arquivo, que se repetem em fundo amarelecido, como que amarrotado pelo tempo. Uma estória. Outra estória? Uma estória singular dos grandes movimentos migratórios americanos. Mas há mais, imagens. Outra mulher, afro-americana, de uma elegância clássica, o casaco e o chapéu de corte irrepreensível, como que a materialização da integridade do carácter, e lá trás a chapa metalizado inconfundível dos autocarros Greyhound. As migrações, os movimentos forçados que rasgam, em cortes profundos, a memória de um povo. A voz lancinante, os gemidos atirados do saxofone, o retalho sonoro em camadas sucessivas. Matana Roberts conta estórias, ela própria o diz a meio do concerto, no primeiro dia da edição deste ano do Out.Fest. Linhas de comboio, arranha-céus, mais fotografias de rostos e casas do sul. Do Luisiana ao Kentucky, a lembrar viagens em Amtrak, dos silvos a esquartejar a paisagem sem fim, de paragens em lugares tão estranhos quanto inóspitos. Nem sempre a viagem é lazer. Há desconforto. Ali está ela, Matana a solo, emersa neste exercício que parece não ter fim. Grita, evoca, canta num registo folk/spoken word, a lembrar todos aqueles que rasgaram as mãos nos campos de algodão, que recolhiam o lixo e morriam ao fazê-lo, até ao dia que clamaram – I Am a Man! Sobre Matana Roberts já muito se escreveu. A sua inteligência enquanto experimentalista, o engenho que dedica ao saxofone, a capacidade para trabalhar em múltiplos contextos – improvisação, teatro, dança e o inusitado entrelaçar de camadas. Não são simples sobreposições. São suspensões. A uma camada não tem necessariamente de suceder outra, pode e deve haver espaço para o vazio, para uma intercalação. A uma camada – um grito, um sussurro, um corte, uma frase interrompida muito provavelmente a indicar sentido inverso. É exercício experimental, como fizesse falta a nota introdutória que lançou no início, é desafio que o público português aprecia e que a mesma retribui com simpatia e a recordar visitas anteriores como a de 2012 na ZDB e no Gallery Hostel, Porto. Coin Coin (Constelation Records), trabalho descomunal, em doze discos dos quais já foram lançados – Coin Coin - Chapter One: Gens de Couleur Libres (2011), Coin Coin - Chapter Two: Mississippi Moonchile (2013) e Coin Coin - Chapter Three: River Run Thee (2015). Até lá resta-nos aguardar pelos restantes volumes e por nova visita. Há concertos que ultrapassam as amarras de qualquer conceito, são novas marcas que nos ficam coladas, impossíveis de esquecer.
Antes, e no andar debaixo, na sala do Be Jazz, espaço para Akira Sakata & Giovanni di Domenico, o primeiro no saxofone e com vocalizações a remeterem para uma qualquer espécie de Fight Club de budas renegados e com o Giovanni Di Domenico ao piano. A terminar a primeira noite, Miguel Mira (violoncelo), Pedro Sousa (saxofone), pensávamos que já não teria mais folgo depois do recente concerto com Gabriel Ferrandini na Galeria Pedro Alfacinha, mas há sempre uma reserva extra para dilacerar almas adormecidas, e Afonso Simões (bateria) num registo que desconhecíamos e bem diferente do que habitualmente faz em Gala Drop.
Uma ida ao Barreiro, nesta altura, não é só um hábito é obrigação. Atravessar a margem nunca fez tanto sentido.
OUT.FEST
08 – 11 de Outubro de 2015
Barreiro . vários espaços