A tarde começa com um calor digno de final de Verão, adivinhando relva verde a perder de vista, um gin fresquinho à sombra das inúmeras árvores do recinto e raparigas bronzeadas de sorriso apurado.
Isilda Sanches abre as hostes e não há como ficar indiferente. De Moodymann aos Carpenters tudo soa mágico e abençoado. Ouvir a Karen Carpenter naquela relva imensa ainda pouco povoada provocou calafrios próximos daquela primeira vez que te apaixonas e és correspondido, mesmo que isso tenha sido há muito tempo atrás e o gin esteja já a meio. Vénias para esta grande mulher. O Lisb-On começou oficialmente e já estou arrepiado.
Depois deste grande início tudo o resto teria que corresponder ou iria ficar muito chateado.
Fandango, o novo projecto de Gabriel Gomes e Luís Varatojo, Acordeão, Guitarra Portuguesa e electrónica, casa uma certa portugalidade com modernidade electrónica. Exímios interpretes, desfilam os temas do seu primeiro disco com mestria e quando encenam uma espécie de Dub fico verdadeiramente rendido.
Mirror People ocupa de seguida o palco com a sua Voyager Band para soltar o pó do PA com a sua dança hipnótica. Desfila os temas do disco Voyager, lançado no início do ano, com roupagens diferentes, urgentes, de um rigor e bom gosto notáveis, capaz de te fazer esquecer toda a música de dança que se tem lançado por cá. Sem dúvida um dos pontos altos do dia. Mesmo sem a voz de Iwona, Come Over continua a arrepiar, tanto que olhei à volta e vi muita gente a entoar esta bela canção.
É de sorrisos que se faz o Lisb-On, mas por vezes nem tudo corre como se espera. O primeiro dia iria ficar marcado por uma enchente monumental (sete mil pessoas) que entupiu aquele jardim como se estivéssemos num desses festivais patrocinados por uma operadora de telecomunicações. O sistema de carregamento de pulseiras com dinheiro não conseguiu dar resposta a todos os que rumaram ao parque à mesma hora, apesar do festival ter começado três artistas atrás. As filas de entrada eram consideráveis e aquela alegria contagiante ameaçou desacreditar tudo.
Sinceramente, eu nem dei por nada. Estava feliz, pulseira carregada e gin na mão, e só pensava que muita gente podia ter chegado à mesma hora que eu e ter ouvido música incrível. Mas o chamamento de Nicholas Jaar fez com que muita gente mais nova quisesse ter o seu momento-selfie.
Foi de tal forma arrebatador que nem consegui meter conversa com aquela miúda que dançava sozinha durante Mirror People e sabia as letras de cor. Primeiro foi a timidez (compreendam que era só o terceiro gin), depois perdi-a de vista na multidão.
Entretanto, enquanto a confusão se instala, dedico-me a ouvir Palms Trax ao longe e embora não me chame muito a atenção, o rapaz é competente, chegando mesmo a ter momentos de muito bom gosto.
Já de Nicholas Jaar não vou reservar tão boas palavras. Não que este rapaz não seja competente, mas tornou-se verdadeiramente chato. Talvez fosse a multidão que mudou completamente de malta mais velha e de ouvidos atentos para putos que vivem com o telemóvel colado à mão.
Tenho que ressalvar o início com os Vampiros do grande José Afonso, emparelhado em teias de reverb. Estava no fosso a fotografar e observei a fila da frente completamente absorta à espera "de uma batida", sem perceber a importância desta canção imortal. Certo que (tal como ele também havia escrito) mudam-se os tempos/mudam-se as vontades, mas não ter consciência de um dos nossos maiores compositores é um pecado mortal.
Fiquei triste mas depois lembrei-me que domingo havia mais e dei o resto do meu gin às duas estrangeiras que me olhavam de alto abaixo enquanto dançava na fila da frente. Sempre a marcar pontos.
Ao segundo dia, o Lisb-On fez-se sentir no seu auge. Não que o cartaz do primeiro dia tenha sido mau, muito pelo contrário, mas nestas coisas de festivais é o público que cria o ambiente. E o segundo dia revelou-se menos caótico, com muitos mais sorrisos por metro quadrado, paz e harmonia.
E que dizer da abertura de Rui Miguel Abreu? Não estava nada à espera. Incrível pós-rave ou o que lhe quiserem chamar, Zomby, Cooly G, Herbert e Moodymann claro, sintetizadores e batidas quebradas, que monumento. Vénias para este senhor. Senti-me verdadeiramente privilegiado por ter entrado à hora certa, tal como aquelas duas meninas que dançavam na sombra oposta à minha entre sorrisos.
Enquanto Mr. Herbert Quain toca a sua electrónica densa, lenta, sensual, o recinto começa a encher mais um pouco, sem a confusão de outrora. Muita gente conhecida e conhecedora que se vai instalando sem pressas nas inúmeras sombras que o recinto proporciona. Sem filas, sem fotos, tudo em harmonia.
Os australianos Andras & Oscar continuam a festa com uma House de sol, relva e mar, cantada de forma soberba por Oscar. Sem pressas, tocam os temas do seu disco Café Romantica (título mais que apropriado) numa paz absoluta carregada de groove de pôr-do-sol.
Do alto, observo a multidão que se embala de forma divertida e é aqui que se consegue observar o espírito do Jardim Sonoro. Não há brindes nem patrocinadores como nos outros festivais; apenas um palco e música desafiadora, que tanto serve para as ancas como para a cabeça.
E é entre os dois que a encontro novamente. Cá em cima, sozinha, sentada na relva de forma pacífica. Talvez fosse o ambiente, a música ou o gin, mas se no dia anterior a tinha perdido de vista hoje não escapava.
Sento-me ao seu lado e continuo a bebericar o gin. Ao fim de uns minutos, ela pergunta-me "Foi muito bom o concerto de Mirror People, não foi?" Limito-me a sorrir. Há coisas que não se dizem. Basta um trocar de olhos para sentir almas gémeas, até porque os Jazzanova iriam tocar daqui a nada.
Trocamos um abraço e assim nos despedimos, sem palavras, apenas um olhar que significa "Vemo-nos lá à frente".
Jazzanova chegam de Berlim e trazem Paul Randolph de Detroit. Banda enorme, tocam os seus temas mais conhecidos carregados de soul, e não deixam ninguém estar quieto. O parque todo está a dançar e se o concerto não foi tão mágico como Roy Ayers o ano passado é porque eu não devia estar tão bem sincronizado.
Todd Terje não trouxe a sua banda e por isso tive que beber mais um gin. Não é o performer mais enérgico mas a sua música é tão divertida que não dá para ficar quieto. Inspector Norse, no final, vai directamente ao coração. Quando começa a tocar esse hino à felicidade, abro os braços e entorno o gin quase todo. Que se lixe, vamos dançar!
O Lisb-On terá sempre um lugar no meu coração. É um festival adulto, muito urgente no manancial de ofertas musicais pouco apuradas e apenas para encher. Filas existem sempre, tal como já presenciei em outros locais e ninguém se queixa. Aqui toda a gente vem pela música. E pelos sorrisos.
A segunda edição, apesar de à primeira vista não ter um cartaz tão forte como o ano passado, confirma que este pequeno recanto da capital está reservado a um estado de espírito (e música) muito próprio que não é sabotado por interesses de outra natureza que não seja proporcionar uma equação forte entre corpo e mente, feita de bom gosto e harmonia.