DIÁRIOS DO UMBIGO

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Fotografias: João Luis Amorim.

Enquanto os Deerhunter tocam no primeiro dia a relva já cheia acolhe uma multidão em convívio sem muito interesse para o que se passa no palco. Percorro a colina de gin na mão e as miúdas, mais velhas, divertem-se com os telemóveis e ajeitam as flores no cabelo, hoje estão menos despidas que no ano passado porque o céu ameaça chorar em cima dos festivaleiros.

Este é o ano em que o NOS Primavera Sound se transforma num produto, será que, ao afirmar-se como um dos cartazes mais aliciantes pela diversidade e ecletismo, afasta-se da comunhão de outrora?

Dia 1

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U.S. Girls jingam a sua pop estranha carregada de samples, um dos mais notórios é o que abençoa Window Shades, uma parte da belíssima e obscura beleza disco Love is a Hurting Thing.  Meghan Remy é ajudada pela sua amiga de mini-saia vermelha e beicinho, ensanduichadas pelo material das bandas seguintes atrás do palco. Meghan toca-se por cima dos seus leggings parecendo aliciar-nos mas o seu olhar é vago, como se ela também estivesse lá em baixo a curtir uma cerveja com os amigos.

Julia Holter aparece por entre a bruma, talvez para se candidatar à substituição da estátua de D. Sebastião que um parvalhão partiu no Rossio. Eu voto nela. Bonito mas não irrompe pelo burburinho ensurdecedor do Parque da Cidade. Também envoltos na bruma, que neste caso é mais um cenário modelar com vídeo e outros aparatos, os Sigur Rós esganiçam as teias da sua música estranha que, infelizmente, também não consegue deixar nódoa negra.

Saí do recinto triste, ou quase triste, porque ainda consegui comer uma bifana da Conga, essa velha tradição, que parecia pouco temperada. Quem me beijasse a seguir sentiria apenas o travo forte do picante nos meus lábios.

Dia 2

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Acordei melhor no dia seguinte porque sonhei com a PJ Harvey. Longe de ser o animal de palco de outrora, a diva multi-instrumentalista nunca se rendeu a facilitismos, sempre fez o que quis e sempre muito bem. Tal como no novo disco, o concerto é político, tétrico, não há espaço para amizades mesmo que na sua banda habitem velhos conhecidos como Mick Harvey e John Parish. Concerto potente, com a diva a irradiar feminismo, garra, força, rock. Será sempre amor eterno, Polly.

Antes, as Savages já tinham partido o palco Super Bock ao meio. Aguardei pacientemente a chegada das miúdas no fosso, de câmara em punho. Ao primeiro acorde sou expelido três metros para trás. Lição número um: nunca comeces a fotografar encostado às colunas de reforço em frente ao palco. A pujança destas Savages é como se Ian Curtis e Siouxie fossem pais de Nick Cave, baixo solto em flirt punk, guitarra envolta em distorção e reverb até ao fim do cosmos, bateria quase militar, voz que comanda a legião até aos confins da batalha.

Batalha essa que, ao segundo dia, afirma-se uma batalha pela diversidade. O recinto está muito mais cheio. À entrada, uma multidão furiosa rouba sem pudor os sacos-manta que a organização oferece todos os anos. É ver o povo a correr desenfreado como malucos. O português adora tudo o que seja à borla. Os sacos-manta desaparecem num instante e a minha sede aumenta, porque ao segundo dia o sol desperta como se fosse acordado pela eletrónica certeira de White Haus, que abriu as hostilidades no palco Super Bock.

O frontman dos X-Wife foi uma bomba mas um concerto deste calibre merecia hora mais nobre. Certeiro na sua pop exímia e muito bem acompanhado, White Haus é um concerto do cacete. Muito mais propício para uma hora noturna, porque dançar com este sol não é aconselhado pelos especialistas. Tive a certeza que fosse este um concerto no palco grande levantava relva até Lisboa.

Por falar em relva: Cass McCombs teve a proeza de ser a banda-sonora de entrada para muito do público que chegava e, longe de ser um concerto de encher estádios de futebol, o confessionário do senhor norte-americano tem tanto de delicado como de psicadélico, cheguei mesmo a ver juras de amor na relva.

Mais que apropriado, então, para abrir um concerto memorável de Brian Wilson, coisa que Destroyer não conseguiu fazer. Concerto frio onde Dan Bejar bebia o seu whisky como acabado de acordar, despejando o seu vasto e interessante cancioneiro como se estivesse a fazer um frete.

Um génio como Brian Wilson parece ser resistente ao tempo, mesmo que a sua voz surja apagada mas isso não interessa. O ano passado foi Patti Smith a lembrar-nos que o antigo tem muito mais urgência que o novo e dois anos antes foram os Television a lembrar que as guitarras de hoje não passam de cópias do que já se fez. Pet Sounds é um dos melhores discos de sempre e foi tocado com uma mestria inigualável.

Apesar da sua voz fraquejar, Brian Wilson consegue cativar-nos, ensaiando piadas a meio das músicas, brindando-nos com outros clássicos da sua carreira com os Beach Boys como California Girls que pôs o Parque da Cidade a dançar como se os Beatles tivessem acabado de editar Rubber Soul. O tempo não passou por aqui.

O tempo também não passou pelos Mudhoney que, afinal, não envergavam camisas de flanela. Touch Me I'm Sick tem direito a uma pequena convulsão na fila da frente e eu próprio entornei um pouco de gin a relembrar os meus tempos de juventude.

À saída do recinto ainda deu para espreitar Holly Herndon no palco Pitchfork, que agora está colocado mesmo à entrada do recinto. Ia vomitando. Imaginem colocar três coelhos, dois gatos, um cão e três tijolos na máquina de lavar roupa a 60 graus e têm uma descrição exata do que ouvi.

Dia 3

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Ao terceiro dia começo a sentir uma ligeira nostalgia, o Primavera está a acabar. Confirmei logo que o cartaz este ano era muito mais coeso, nos palcos "principais" há bandas consagradas ou prestes a dar o salto, como os Algiers que, infelizmente, estavam-se nas tintas para o público. Pena, porque o punk-gospel-industrial que praticam é francamente interessante. Nos palcos "secundários" há, essencialmente, uma pitada de eletrónica e guitarras bem fortes.

Drive Like Jehu, incrível banda dos 90 que se juntou novamente para uma mini-tour protagonizaram um dos concertos do festival, certeiros, urgentes, soam tão bem como em 1994. Tal como os Linda Martini, que continuam a ser uma banda de palco, mesmo estando a meio gás, com uma legião de fans nas filas da frente em delírio a entoar a letra de 100 Metros Sereia como se fosse o hino nacional. E podia ser, tivessem tocado a horas de banda internacional.

Ty Segall fecha o Palco ponto, ou Palco., que no ano passado era ATP. Embora não tenha sido o deboche do concerto de Barcelona, dizem, foi outro grande momento de um festival sem horas mortas.

Que é como quem diz, ponto e vírgula, porque os Battles não sabem o que andam a fazer. Mesmo os Explosions in the Sky, num concerto mais que aguardado, ficaram muito aquém das expectativas. Das minhas, claro, que sou eu quem está a escrever este texto.

Mas quem fosse à procura de outra coisa que não sejam guitarras cortadas à faca ficou muito bem servido: os Air deram um concerto algo previsível mas que comprova que são uma banda de canções boas, munidos de um aparato visual sumptuoso, mesmo a torre espacial ao lado do palco, cortesia do patrocinador, conseguiu render-se à pop espacial. E eu também, apesar de ter estado metade do concerto na fila para a barraca do gin entre dois grupos de espanhóis e as suas selfies. É que o bar do gin estava mesmo ao lado do palco principal.

Houve também espaço para os Chairlift, dupla de requintes pop modernos muito interessante que me fez voltar a ter 19 anos. Simples e eficaz, tal como as miúdas e miúdos derretidos na primeira fila durante o concerto.

Tenho a sensação que este ano consegui ver mais concertos, se é que isso faz sentido. A diversidade foi notória e o equilíbrio entre todos os palcos bem mais satisfatório, e prefiro o NOS Primavera Sound assim: sem grandes nomes multimilionários a roubar o palco grande. Com bandas prestes a explodir e velhas lendas a mostrar que ainda são relevantes. Boas surpresas e alguns bocejos, mas nada que atrapalhe a comunhão.

Mesmo na multidão imensa há uma sensação de proximidade, como se estivéssemos todos no quintal do vizinho. Há a preocupação constante da organização em tornar a experiência o mais solene possível, bastante evidente na brilhante ideia de não utilizar copos de plástico descartáveis: pagas um depósito de 2 euros por um copo e basta encheres durante o festival. O resultado? Não há lixo no recinto.

Tive medo que o NOS Primavera Sound se tivesse tornasse corriqueiro mas isso nunca aconteceu. Aquele local que visito há três anos consecutivos continua igual, melhora, afina pormenores, sempre adulto, sempre eficaz. O choque na quinta-feira depressa se dissipou, tal como as nuvens que no segundo dia deram lugar ao sol.

Se para o ano o festival esgotar ou trouxer mais pessoas eu não tenho medo: todas as pessoas que forem pela primeira vez ao festival vão se deixar contagiar, tal como eu, pelo ambiente adulto e pela escolha musical certeira, fora de modas mas sempre urgente. Já tenho saudades, caramba.

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