Fotografias: Nuno Gervásio.
Música. Música. Sem necessidade de recorrer a definições ou terminologia relacionada. Não música. Não música como a manifestação da destruição de harmonias, melodias, ritmos. Todos os anos, no final do mês de Julho, em Barcelos e no Milhões de Festa. O único ponto de confluência para propostas tão aparentemente dissonantes. Ninguém pode ficar indiferente à singularidade pop e letras escritas no pé da calçada de Éme, à brutalidade sónica de Hey Colossus, à permanente desestruturação rítmica de Deerhoof, à ginga brejeira q.b. de Tocha Pestana, ao groove perfumado e ritmado das THEESatisfaction, à eletrónica de efeitos paranormais de Peaking Light, às guitarras esquizofrénicas de Go!Zilla, à cumbia com apontamentos de ornitologia espontânea dos Meridian Brothers, à permanente ligação aos subterrâneos da proposta tão claustrofóbica e asfixiante como The Bug, para os ritmos hipnóticos de HHY & The Macumbas ou para os momentos de espacialidade ilimitada de Michael Rother. Acrescentar mais exemplos é tarefa fácil. As propostas são mais que muitas e sempre apresentadas para que se possa ter acesso a todos os concertos sem coincidências de horários. Da Piscina ao Palco Taina, do Palco Vodafone.fm ao Palco Milhões são pequenos saltos que se fazem com sentido de felicidade redobrada, não só por ser o momento para mais uma cerveja, mas sobretudo para ouvir uma proposta desconhecida ou confirmar a qualidade das já conhecidas.
Comunidade. De definição mais incerta, sobretudo em tempos de ditames impostos pela força que não a da razão, mas onde se encontra muito do encantamento que o Milhões consegue suscitar ano após ano. Não necessariamente o sentido de comunidade com toalha na relva e bebida à volta de uma piscina, esse é estimulante sem dúvida, mas o sentido comunitário debruçado sobre um gosto, talvez o termo mais adequado seja obsessão – a música. Músicos, jornalistas, promotores, editores ou quem a ouve com uma assiduidade ao minuto – todos se encontram aqui. Demasiado vago? Talvez. Mas que outro Festival oferece um jornal onde se apresentam os concertos do dia e os respectivos protagonistas através de artigos com conteúdo relevante? Toalha ao ombro, chinelo no pé e antes de abancar pegar no Milhões de Notas – artigos sobre a universalidade dos valores da cumbia pelos Chancha Via Circuito, a incredulidade de Michael Rother pelo impacto que o Krautrock assumiu em projectos tão díspares e ao longo dos anos, a visão do Festival por quem o conhece tão bem como Fábio Costa (Lovers & Lollypops) e Nuno Rodrigues (Glokenwise | Duquesa), são alguns dos textos escritos com uma clareza singular. Durante o set de Tiago, bem na primeira fila, depois de ter terminado a respectiva actuação, há um bom par de horas, deparamo-nos com Aaron Coyes (outra metade de Peaking Light) a ser um de nós. O deixar-se ir, a contorcer-se de tal modo que ele e o universo em volta são um só. Haverá tantos mais festivais assim?
A música, não nos esqueçamos. A música e o cuidado com que se programa. Também daí o caracter único do Milhões?