Jardim Sonoro, Domingo
O meu pressentimento estava certo. Acordo no domingo com a ligeira impressão que parte da noite ficou algures entre o Cais do Sodré e o Incógnito. Procuro a Tânia, podia tê-la perdido algures na imensidão da noite mas logo a encontro no sofá, a dormir como um anjo. Acordo-a e lá descemos novamente ao Parque para o último dia do Lisb/On.
Sei que após termos saído do recinto encontrámos o Carlos que nos arrastou para um jantar bem regado. Dessa parte lembro-me. Depois a Tânia insistiu para ir ao Lounge. Ou talvez tenha sido eu. Sei que me Lembro do Ka§par, do Trol e do Daino a partirem a loiça e de ter dado um valente encontrão no gira-discos. Lembro-me de ter a sensação de estar a ir para casa mas o resto está pouco nítido.
Estes Rapazes Vão Salvar-nos a Dança
Nada que um Hendricks não resolva, logo à entrada do festival. A minha pulseira ainda tinha saldo, felizmente. Veio-me à memória um fragmento da noite anterior em que tinha tentado comprar um gin no Lounge e insistido para que me cobrassem da pulseira. Mas pode ter sido um sonho. Se não há fotos não aconteceu.
O primeiro gole é como aterrar, por isso trato logo de me recompor e avançar pela relva até ao palco para ouvir os Thunder & Co.
Este é o primeiro concerto da banda e como tal a atmosfera é de suspense, como se estivesse a assistir a algo único. Quatro rapazes da minha idade a brincar com o Disco com muita sobriedade, melodias e refrões certeiros que adivinham um futuro promissor. A Tânia começa logo a dançar e diz-me ao ouvido "Estes são os novos LCD Soundsystem, não achas?" Eu digo que sim, venham lá a casa virar umas garrafinhas para se soltarem mais e daqui a um ano estão a dar concertos de fazer corar o Papa.
Bem impressionado com os rapazes, decido que está na hora de ensopar o gin com algo comestível e atacamos a barraca dos cachorros. O sol hoje brilha como se fosse o pico do verão. Adivinha-se uma tarde mágica, até porque logo vai tocar o senhor Roy Ayers.
Estes Dormiram Cá?
De volta ao palco descubro umas caras familiares. A Tânia também: "Olha, aqueles dois tocaram ontem". Pois é, o Moullinex e o Xinobi, acompanhados do senhor Mitsuhirato. Tocam a House deles salpicada de disco e gostei de uma versão do Love Has Come Around do grande Donald Byrd.
Entretanto aparece a Elsa. Começa logo a descrever as minhas figuras nocturnas, afirmando a pés juntos que eu invadi a pista do Lounge a dançar que nem um maluco, arrancando aplausos e tudo. Não me lembro nada disso por isso nego com veemência. Ela parece divertida e quer contar mais episódios mas eu consigo escapar-me, até porque começam a tocar os Sensible Soccers.
Ora esses senhores do shoegaze entram numa catárse cinematográfica que ao início parece demasiado paisagista mas que ao fim de uns minutos culmina num gingar de ancas muito particular, quase sem dares por isso. Enganaram-me bem, estes barbudos. Acabam mesmo assim, sem mais nem menos, e aqueles últimos acordes ficam a pairar na relva que ainda estava muito pouco preenchida.
Elevadores no Parque
O senhor que se segue também não proferiu palavra, até porque nem tinha microfone. Mirror People ocupa-se dos seus brinquedos e a electrónica sensual e certeira começa a entrar-me nas ancas. Por vezes demasiado mecânico, senti que seria uma performance mais nocturna que solarenga. Apesar disso, Mirror People domina o groove e consegue arrancar sorrisos à pequena multidão.
Quando acaba é altura de visitar o velho amigo Hendricks. Um rapaz ocupa-se a fazer cocktails que parecem deliciosos e não fosse eu um homem de convicções teria concerteza provado um. Há fotógrafos por perto e seria má publicidade bebericar um cocktail colorido.
Ao longe algo parece começar mas nem dei por isso. Parecia uma espécie de música ambiente tipo elevador. Foquei melhor os óculos a tentar ver se no palco actuava alguém.
A Vida Secreta das Máquinas é um projecto de Rodrigo Leão, senhor compositor interessante, mas aquela electrónica a atirar para a música de salão de chá com alguns beats saídos de um velho Casio de brincar não estava a colar bem com a atmosfera do festival. Provavelmente seria o timing errado, depois da electrónica dançante anterior, o que é certo é que a multidão não pareceu aderir totalmente.
De louvar é a atitude do pessoal, que apesar disso ouve atentamente o concerto, com respeito. Há bons momentos que podiam dar asas e largar o óbvio, mas eram cortados, como se os elementos da banda tivessem medo de se soltar. Esforcei-me por gostar, entrosado a 100% no espírito Lisb/On, mas não consegui.
Nos últimos minutos, como por magia, parece que a banda acordou e o beat tornou-se mais forte, complexo, a ameaçar arrebentar com tudo mas foi só um pequeno trovão.
Nada disso importa muito porque o senhor que se segue é Roy Ayers.
A Relva Também Dança
O senhor já tem a sua idade mas isso não lhe atrapalha o sorriso. Faz as coisas com cuidado mas está divertido, trocando piadas entre os seus colegas de palco, todos eles portentosos. O baterista tem uma força incrível, o pianista percorre os dois teclados como se percorresse o corpo de uma mulher e o mestre de cerimónias barra vocalista entretém-nos e arranca-nos palmas ao ritmo da música.
Toda a gente conhece os temas de Roy Ayers, estão gravados para sempre na memória colectiva. Esta pequena banda não é nada pequena para fazer verdadeira justiça ao seu cancioneiro, muito pelo contrário, a voracidade e alegria com que se entregam às notas é tão honesta e sensível que a multidão mais uma vez se uniu em coro para dançar e celebrar a vida. Ninguém estava parado, todos dançavam de sorriso rasgado, vidrados no palco.
Roy Ayers afirma que eles adivinharam que não iria chover no domingo. Porquê? Everybody Loves the Sunshine. Ora toma lá. É com as suas palavras sábias que introduz a maior parte dos temas que toca, com a sagacidade de alguém que presenciou as melhores décadas da música.
Foi sem dúvida o momento do festival, sem desprimor para os outros artistas, todos eles relevantes, mesmo a chatice do Rodrigo Leão. Tudo tem que ter um climax, e Roy Ayers foi o orgasmo, aquele momento-chave que o festival foi construindo ao longo dos dois dias. Até as árvores esvoaçavam em concordância. Uma moldura humana compacta, de dança sem preconceitos, sem géneros, sem barreiras.
Depois de Ti Mais Nada
E o que há depois de Roy Ayers? Há ainda mais dois gira-disquistas que não consegui ouvir porque a Tânia arrastou-me do recinto.
Há coisas que mesmo para um homem calejado das palavras são difíceis de escrever. Um cartaz irrepreensível, para gente adulta que tem o ouvido educado, com uma organização exemplar e cuidada, com relva a perder de vista e muita dança sem preconceitos. Senti também que muito do espírito do Primavera Sound que assiti no Porto ecoava por aqui, mas este é diferente. Este tem caras conhecidas, amigos, amores de outros tempos, bandas e DJs que não estão na moda: são eternos.
Cá fora pergunto à Tânia se estava tudo bem, se havia algum problema. Responde-me no alto da sua juventude:
"Não quero ficar para assistir ao fim porque assim parece que acabou para sempre. Se sairmos agora acordamos amanhã e ainda cá estamos."
Não podia finalizar melhor.