Fotografias dos concertos: Alípio Padilha.
Fotografias do ambiente: João Luís Amorim.
O Dia acorda com uma chuva ameaçadora mas nada que possa deter este espírito de escritor de festivais, que sempre é mais interessante que escrever sobre mim próprio como de costume.
O almoço é passado na Churrasqueira Portuguesa onde meia dose dá-te para uma semana, e com uma espetada divinal a fazer maravilhas cá dentro apanho o autocarro rumo ao Parque da Cidade para ver as primeiras bandas do dia.
As Primeiras Gotas do Dia
O Parque está com uma cor sombria, as nuvens são carregadas e a relva escorregadia mas os festivaleiros não têm medo. Os sacos/manta que a organização oferece são usados para sentar o traseiro na relva e eu próprio já me tornei fã. A acompanhar o rol de oferendas, hoje o prato do dia são impermeáveis transparentes do patrocinador que são devorados ferozmente.
Olho para o programa, já com um gin na mão para absorver a humidade, e o nome dos Television provoca-me logo bons calafrios. O Marquee Moon é um dos meus discos de cabeceira e ou/vê-lo ao vivo vai cair que nem gin(jas).
A primeira banda do dia é uma esquizofrenia que dá pelo nome de HHY & The Macumbas, que ensaiam uma espécie de jazz dissonante envergando máscaras tribais, carregando forte na percussão. Até podia fazer sentido mas talvez o gin ainda não estivesse a surtir efeito por isso vou até ao palco ATP que hoje já está aberto.
A primeira banda desse palco está atrasada, e por isso regresso ao palco principal para ver os portugueses Torto e percebo que o dia é dedicado ao shoegazing, pós-punk e instrumentais do demónio.
Os Torto foram os primeiros a fazer click naquele manancial de guitarras distorcidas, competentes mas algo tímidos. Não foi, contudo, suficiente para fazer-me sentir algo que mereça palavra especial e por isso percorro o recinto até ao palco ATP para tentar encontrar o melhor lugar para ver televisão.
Lá encontram-se os Fõllakzoid a desbravar terrenos cósmicos. A voz é imperceptível e a atitude concentrada mas o som já toca cá dentro. Riffs mais certeiros, esticados até ao limite, uma viagem bem temperada.
Findo o concerto rumo até à zona de imprensa tentar fazer bingo no cartão de bebidas e, absorto, só reparo nela quando está em cima de mim.
Só Gosto desta Televisão
Não há um pedido de desculpas quando atira-se literalmente para os meus braços e tive que a agarrar senão escorregava relva abaixo. Envergava os óculos de sol & lábios carregados da praxe e a conversa era descontraída. Agarra-me e leva-me para o palco Super Bock onde estão a tocar os Midlake e pelo caminho pergunta-me se estou a gostar do festival.
Não sei bem que lhe respondi mas quando chegámos lá abaixo já estavam as suas amigas entretidas numa desconexão total da realidade, tirando fotos com os telemóveis e regando a relva com a cerveja.
Num momento de lucidez faço a minha escapadela à francesa e deixo-as a curtir os Midlake.
Com a garganta seca lá tenho que contentar-me com uma Super Bock (espero que Elsa consiga um patrocínio com estas referências publicitárias) e posiciono-me no local que me parece o mais indicado para ver os grandes Television. Pouso a cerveja para enrolar um cigarro, levando uma série de segundos a equilibrar o copo de plástico de forma a manter-se estável.
Em frente está um grupo bem animado que se diverte a contar estórias engraçadas e após acender o cigarro volto para a cerveja fresquinha mas, por um acaso mágico ou talvez cósmico, o copo tinha-se entornado todo na relva.
Fico a olhar para o derrame como uma criança que deixou cair o chupa e lembro-me que podia ter evitado o desastre se aquela rapariga não tivesse interrompido a minha marcha até à zona de imprensa. No meu dilema emocional, um dos rapazes da frente oferece-me metade da sua cerveja sem dizer palavra. Caramba, tinha me esquecido que a malta aqui no Porto é mais fixe que em Lisboa.
Agradeço-lhe rapidamente que os Television já estão em palco. Tom Verlaine não olha para nós, concentradíssimo a afinar a sua guitarra. See No Evil ecoa relva adentro e lembro-me porque é que a minha juventude foi tão rebelde.
Ver os Television, mesmo sem Richard Hell, é quase como ouvir o disco. Não há desvios, solos espontâneos ou palavras de apreço. Tocam o que têm que tocar e pronto. Verlaine ocupa todos os intervalos entre músicas para afinar a sua guitarra e embora isso comece a irritar um bocadinho a música que entra a seguir desfaz logo qualquer mágoa. Tocaram-nas todas, Friction, Venus, e quase de início uma das favoritas, Elevation, entoada a pulmões por boa parte do público.
Melhor que ouvir estes hinos de um álbum mágico é ouvir muita gente a gostar disto. Há esperança na humanidade. "Marquee Moon", claro, fecha o concerto e reparo que ao meu lado está uma miúda lindíssima a cantar, tal como eu, a letra toda desse grande tema.
Podiam-se ter mexido mais um bocado, e fiquei com a sensação que o senhor Verlaine nunca gostou de tocar ao vivo. Come muitas palavras, quase que se esquece de vir cantar, ocupa demasiado tempo a afinar a sua guitarra e parece que tem sempre um bocado de bolo rei nos cantos da boca, mas é essa a magia destes virtuosos.
Gosto Mais de África
Aproveito para jantar e dar uma volta, encontrando o Alípio que está a fotografar. Dois dedos de conversa e outro gin depois, vamos até ao palco principal para ouvir o avô Frank Black.
Caramba, que estás gordo pá. Há qualquer coisa de hospital nestes Pixies, tudo muito hermético, uma seca basicamente. Debaser, sem soar a karaoke, é tocado sem chama, sem fulgor. A nova baixista dá um certa lufada de ar fresco a este ensemble mas não chega para provocar. E acreditem-me, eu estava na primeira fila. Vim-me embora nem a meio e rumei até ao palco Pitchfork para a primeira surpresa do dia.
John Wizards atacam África, Caraíbas e Nova Iorque com uma sedução que parece trazer o sol de volta ao Parque da Cidade. Arrancam também o primeiro portento de baixo do dia, naquele palco mais fechado, que soa imenso, arranhando os sítios certos. O frontman deleita-nos com o seu ar cool entre declarações de amor "You're all so sweet, thank you".
Devo ter começado a gingar a anca ligeiramente, concentrado na minha tarefa de escritor musical. Só pode ter sido essa a explicação.
Ao meu lado alguém me agarra o braço e incita-me à dança. Era a rapariga que me atropelou horas antes. "Eu sabia que te ia encontrar" grita-me ao ouvido. Obriga-me a dançar e a girar que nem uma marionete. Coloca-me um sorriso nos lábios e quando o encore chega desaparece tal como tinha chegado.
Finalizo o gin e enfrento o frio da noite para ir ver os Mogwai.
Onde Está a Soul?
Os Mogwai deambulam entre a catárse e a sedução, sem grandes exaltações de personalidade. É música para cinema, de introspecção, por isso foi uma surpresa ver bastante gente a assistir. Mas àquela hora é uma combinação sonolenta que fere até os mais acérrimos defensores deste pós-rock certeiro.
Faltou vídeo na actuação dos Mogwai, algo que pudesse acompanhar o que a mente já não consegue fabricar depois de mais um dia de guitarras. Notava-se na primeira fila algumas fans de olhos cerrados, sonolentas, ou talvez embaladas.
Talvez precisassem todos de um gin.
O apelo dos Shellac lá ao fundo quase me fez esquecer o cansaço mas decidi terminar ali o segundo dia deste festival que me começa a conquistar aos poucos. Talvez seja a combinação de bandas fora do comum ou a localização num Parque tão intenso, ou por ser aqui nesta cidade de mistérios e gente de sorrisos e língua afiada.
Mas ao segundo dia fartei-me completamente de guitarras em distorção. Não que as bandas não sejam competentes, umas mais certeiras que outras, claro, mas o que é demasiado acaba ou por ser letárgico ou mágico, dependendo da disposição.
Vim para o Hotel com os Shellac a partir tudo ao fundo (e talvez fossem eles que me fizessem voltar aos amplificadores) mas a esperança do último dia de festival vai cair no homem-soul Charles Bradley e é com James Brown na cabeça que finalizo este dia.