A Elsa atirou-me para o comboio em direcção ao Porto e eu não recusei. Disse-me que ia fazer a reportagem do festival NOS Primavera Sound (nós? nús? não faço ideia, mas se é nudez contem comigo).
Tenho sempre boas recordações do Porto, uma cidade banhada por um Douro de curvas femininas, onde a comida é boa e as mulheres quentes e de língua afiada. Como sempre, parto à descoberta sem olhar para o cartaz do evento, a escrita aguça-se mais na espectativa.
O Hotel serve só para uma descompressão rápida e apanho logo o autocarro para o Parque da Cidade. Desta vez tenho apenas uma pulseira e um cartão, nada de coisas penduradas ao pescoço. O céu ameaça abrir-se em chuva, mas enquanto houver pássaros a voar estamos seguros.
Um Mar de Verde & Meninas com Flores
Dou logo de caras com a imensidão deste parque, relva a perder de vista, os palcos estrategicamente colocados ao fim da encosta, num anfiteatro natural. Noto logo também a barraca do Gin, que me acompanha pelas primeiras deambulações.
Há uma atmosfera muito positiva nestas primeiras horas, meninas de flores na cabeça e lábios carregados de batom, sorrisos e gente a correr do outro lado do parque. Hoje é o primeiro dia e só estão dois palcos a funcionar.
A primeira banda, Os da Cidade, é uma espécie de Trovante mas sem aquela atitude empinada. Espécie de super-grupo de trovadores, tocam alguns originais e outros do nosso cancioneiro e brincam com a tenda VIP provocando alguma reacção do público: "a vipalhada só vem ver o Caetano".
Não surpreenderam muito, faltou alguma espontaneidade, mas há ali um certo ar de hospital, hermético, esterilizado, que estraga-lhes um bocado a atitude. Boas canções são sempre boas canções e estes rapazes têm o Português bem sambado na língua.
Subo a encosta e volto a descê-la para ouvir Rodrigo Amarante, brasileiro que também canta em francês e inglês. Pelos gritos lá à frente adivinha-se uma multidão fiel. Seguindo quase o mesmo registo do grupo anterior, este barbudo desfila as suas canções confessionais, com um certo toque de loucura controlada, mas o tom é demasiado íntimo para uma plateia destas ao ar livre.
Decido ir até à zona de imprensa ver como é que os "colegas" fazem a sua magia. Aqui não há gin (nem lugar para sentar), mas um número infinito de computadores, câmaras e tripés. Fico deprimido com a visão e volto a colocar o minúsculo bloco de notas no bolso.
Uma Bifana Para Ensopar Esta Pop
Aproveito para espreitar os Spoon que já tocam no palco NOS. Rock convencional, com momentos que podiam provocar catarse mas não chegam para os elevar deste estatuto de banda para encher chouriços. E é pena, a camisa do vocalista estava bem engomada.
Decido ir jantar. Há bastante oferta por aqui, nada do habitual pão-com-qualquer-coisa dos outros festivais. Como se eu conhecesse os festivais todos. Decido-me pela bifana da Conga, bem picante, e chega para aconchegar o espírito.
Passeio e observo a multidão que se deleita pela relva, alguns aproveitam para beber um vinho em copo de vidro como deve ser, muitos aproveitam também para tirar fotografias, uma moda que irrita um bocado. No geral, é tudo positivo, e consegue-se ver os concertos de forma tranquila, havendo sempre espaço para chegar um pouco mais à frente.
Sky Ferreira actua agora no palco Super Bock. Ora temos aqui uma menina que tenta ser rebelde com seus óculos de sol, casaco de cabedal e lábios tão vermelhos como se tivesse passado a noite a beber vinho. Há uma multidão feminina que grita lá à frente enquanto Sky se atira a uma pop de adolescente alternativo, sem ser demasiado dançável nem demasiado alternativa. Parece tudo muito estudado e com pouca chama. Há um tema que chama mais a atenção, mais enérgico, onde a guitarra rasga os tímpanos num loop preciso mas logo a seguir um shá-lá-lá disfarçado torce-me no nariz.
Saída à francesa, como de costume, e vou preparar-me para ouvir o grande Caetano.
O Caetano é Foda
O Cateano Veloso é um velho amigo, embora sempre tenha preferido o outsider Jorge Ben. Apresenta o seu espectáculo Abraçaço, com a sua Banda Cê. Logo a abrir, um single que toda a gente estava à espera: A Bossa Nova é Foda. Da forma como a multidão à minha volta gritava "Foda" parecia que a vida deles dependia disso. Ou talvez quisessem só dizer "Foda" para todo o mundo ouvir. Devia ter trazido um cartaz a dizer "Foda é mais fixe que dizer Foda".
Esse tema antevê um concerto mais psicadélico, mordaz, inquieto, mas o senhor Caetano dá-nos alguns bombons mais antigos como Baby (sem Gal não é a mesma coisa), munido apenas do seu violão. Esperneia ligeiramente, atira-se no chão, apresenta dez vezes o seu guitarrista, um rapaz que não tem receio de atacar a guitarra como se estivesse na guerra.
Mas senti que não havia a comunhão necessária para este tipo de espectáculo ser mais eficaz. À minha volta toda a gente conversava entre fotos e gritaria, e embora o tom não fosse sempre de gozo isso acaba por estragar-me a concentração e saio dali antes do concerto terminar.
Na sala de Imprensa continua tudo atarefado e aproveito para visitar as casas de banho de plástico para a seguir preencher um quadrado no meu cartão de bebidas. Senti também a fome a apertar por isso decidi-me por outra bifana da Conga. Na zona das comidas o ambiente é sereno, e aproveito para tirar algumas notas.
Ainda não houve um concerto que me provocasse calafrios mas ainda faltam mais dois dias. A maior parte do público é gente mais velha, a confusão é bastante controlada e o espaço do recinto está bem delineado pelo verde imenso do Parque da Cidade. Mas sinto a falta dos outros palcos para desanuviar.
Miúda Não Me Mates as Vibrações
Volto para o palco da cerveja a tempo das Haim, três meninas que rockam como se os anos 80 ainda durassem. Soam melhor quando saem da canção, embora esses momentos fossem ligeiramente ensaiados demais para o meu gosto. Têm atitude e interjeições na ponta da língua (e pernas fogosas a acompanhar) e isso bastou para que visse o concerto até ao fim.
A seguir ruma tudo ao palco do lado para ouvir um tal de Kendrick Lamar. O rapaz foi a pedra-chave neste primeiro dia, primeiro porque afasta-se das guitarras para entoar o seu hip-hop sujo mas melódico, depois porque o poder do baixo ecoa pela relva acima e provoca o primeiro calafrio da noite. Bitch Don't Kill My Vibe é entoada por todos, e apesar da pose e alguma mania, Lamar sabe conquistar a plateia e arrancar danças inesperadas um pouco por todo o lado.
Saio do concerto com a sensação de dever cumprido e já nem quis ver a última banda. Estou ansioso para ver a mecânica dos quatro palcos, e certamente que irá haver mais coisas para provocar arrepios, até porque amanhã tocam os Television.