NOTAS SOLTAS

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Sais do Maria Matos agredido pela peça mais aborrecida do ano, de galochas cor de rosa a arrastar meia dúzia de olhos colados aos pés e perguntas-te se esta gente não sabe o que é o entrudo ou se passar hora e meia com a boca a saber a falta de tabaco lhes invalida a memória. Sacas de um sorriso demente como quem varre as Marias e os Matos do interesse alheio e escreves meia dúzia de instruções SMS agendadas no menu da noite de quinta-feira: gatos pingados a noroeste, ratos do Bairro Alto a sudeste e uma ex-namorada avulsa especialmente simpática desde o último fim de relação – a sul? A norte? Ou com intenções especialmente centralizadas?

Às duas por três e antes das zero (horas), há uma mesa povoada por pontos cardiais no café Tati do Cais do Sodré a escolher combustíveis que mantenham o álcool entretido na saga das noites brancas. Pedro, Susana e Ricardo perfazem o rol de aliados que trocam histórias de dias ainda à flor da pele, passos tropeçados e vitórias menores. A imperial partida em quatro lugares abre o cenário para o poiso seguinte: Teatro do Bairro, no próprio, sem dúvida alguma! (Nem por lá passamos.)

Num qualquer bar aleatório, o plano cortado sobre o momento presente incide na mesa apartada que nos interdita maior proximidade e omite arestas de TV ligada à irrelevância, flippers mais museológicos que manuseados e outros estádios de luz a saber a taverna. Alimentamos a fome de pitoresco num anexo semi-punk aposto a laivos de smart dressing que solta meia dúzia de vocábulos indignados sobre o festival RiR deste ano para reatar a decadência actual dos subgéneros musicais das minorias, sem que ninguém admita a ironia intrínseca. Mastigam-se Pixies, Joy Division e réstias de pseudo-gótico para limpar a cabeça feita na ovelha negra do politicamente correcto e sobra léxico para tratar bandas que não encaixam no consenso da mesa. Abro caminho para se discutir conservadorismo no anti-conservador por natureza, mas excluindo as habituais cedências ricardinas, Susana e Pedro exibem a geografia mental militante da casta polida de alternativo bem encaixado no hábito. Bom reaccionário que sou, estendo as hostilidades para sugerir poesia acompanhada pelas ambiências musicais que acompanham o Tiago Gomes na nova Garagem da Graça, como quem saca de um termómetro de humores; sou ostracizado pelo gosto – sempre um prazer. Abrem-se logo caminhos para o plafond de duas cervejas ter sido atingido e segue-se para uma incursão aleatória pelo refugo de uma noite sem lotação que nos leva ao Maria Caxuxa.

Saltam à vista encontros imediatos de qualquer grau semi-alcoolizado, arrasta-se o opróbrio do som presente para as imediações do trânsito da porta e solta-se o riso meio indignado a propósito do novo retalho de espaço nocturno no meio da Rua do Alecrim que é uma pura reedição das docas em pleno Cais. Alimentado o desprezo já polvilhado por notícias de peripécia copofónica, surge uma peça lateral sobre o motor dos meus textos na Umbigo – “até gosto do estilo, embora sejam brancos como o título no conteúdo”. Traço uma correspondência ao acervo fotográfico gratuito de dedo leve no gatilho que o coldre da mala da Susana oculta e revelo uma mudança de rumo para breve ao informar que o flash da minha câmara literária precisa de reparação.

Do jogo metafórico do pauzinho mais curto, mede-se a disposição para um assalto ao Primeiro Andar. Ninguém está disposto a ir – todos vão, claro está.

Atracados no cais da Avenida, subimos ao andar primeiro, enquanto desço ao purgatório: deparo-me no imediato com os cabelos ruivos da minha prenda de anos envenenada, uma carta de demissão mal digerida exposta à humilhação do DJ que nos oferece o refrão We don’t exist dos Arcade Fire – pretexto perfeito para um gin que mude a tónica.

Em nome da dispersão, a Susana encontra o ex-namorado, o Ricardo está preso à pista de dança e o Pedro afaga-me as mágoas da memória fresca ao debitar consolos de experiência pessoal e apoiar uma eventual fuga para terras de Sua Majestade por tempo indeterminado.

Quando o relógio biológico te afirma longevidades em relação ao lusco-fusco da hora inicial e a hora te franze a sobrancelha que não tem, apenas sobra na agenda um espaço em branco do tamanho da noite.

O décimo ou vigésimo tema do ouvido cansado levanta a bandeira amarela e começam a sentir-se os sintomas das 3 da manhã: desejos de Incógnito, vontade de ir matar a noite onde ela é quase caseira. O táxi já te conhece os caminhos, os amigos já te conhecem o hábito que é o deles. Não há códigos Morse, não há tal necessidade. Há um percurso já do tamanho de dois veículos e um reencontro à porta de um templo de afinidades.

Mato interstícios de espera ao contar à Susana sobre a minha nova obra poética, cujo título de duas iniciais levanta interrogações e deixo escapar a última palavra ambígua antes de brindar o bigode de boas vindas que logo nos despeja no palco dos reencontros com a fauna interior.

Há abraços, cumprimentos circunspectos e o ocasional reencontro inesperado. No piso superior, faz-se fila para o copo que arrasta o fígado para o limite e, no inferior, dança-se o jogo do conhecimento sem embraiagem, ciente de que o momento seguinte é incandescente, enquanto demasiados corpos dão razão ao DJ e se ignora o balde de água fria que é o fecho das cinco.

Nas mesas curtas que me acomodam os fins de noite nascem complôs de festas privadas, sobram performances de fulgores artísticos – “a minha exposição só está patente até amanhã” –, e as glosas líquidas de boémias mascadas no maço alheio só podem ser bem digeridas pela bebida branca que ainda não foi servida. Há um cronómetro de noite ignorado pela fluidez do momento e falamos de ouro, falamos de um pedestal de tendências de adesão imediata e circuitos pensados na terceira pessoa que te estimulam o cunho pessoal; falamos da frase que te assenta e que acentuas ao derivá-la para a tua própria – são sofás que te afagam o pensamento e que fecham o circuito da noite avulsa.

És servido, mas já morreste feliz. Morre, então, o gin com o qual discutes o resumo da noite e sabes que ele lhe reconhece a morte ao aconselhar o dia seguinte. À porta dos desesperos da continuidade, já o caos te levou os amigos para parte incerta e aquele carro lá ao fundo não te é estranho, embora já deva estar a dormir e não o queiras acordar. Um dedo no telemóvel sugere um reencontro com o passado recente, mas a matemática das circunstâncias ergue a derrota da tentação ao ceder à do táxi fortuito. As palavras que te sobram são engolidas pela ameaça da madrugada, salvo a monocórdica do destino que dá azo ao silêncio do ponto final... daqueles com parágrafo.

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