São horas. Não é ainda certo de quê, mas são, certamente. A minha mão estendida sobre a mesa do gin que suplantou a cevada do arranque anuncia a derrota do momento. Escrevo sobre noites brancas que erguem bandeiras igualmente pálidas e encontro a caneta mental ocupada a sacar da memória uma peça disfórica do passado recente que insiste em fazer pingue-pongue na consciência repetindo o refrão “aquela noite… lembras-te?”. Ao ponto que a falta de inimigos é facilmente colmatada pelo alter ego da algibeira. Agradeço-me com sarcasmo.
Em plena batalha campal, entre tons de enredo passado e observações avulsas, surge-me algo mais pungente: uma palavra, quase acorde, quase refrão, que repete um nome de quatro letras, um sorriso de quatro poses numa noite passada ou o jeito particular de uma mão feminina que conta os mesmos quatro dedos de conversa que nos aproximam, inscrevendo-nos mutuamente no conhecimento do outro: Inês, uma crónica anunciada.
No entanto, não há como não acordar para o momento. O DJ do Indie esboça um sorriso ao tocar o Femme Fatale. Pensa para si que é a versão masterizada e que isso arrasaria qualquer romantismo do conhecimento, qual sedução sabotada.
A duas mesas de distância, um deserto de proximidades: Mónica, alta, súbdita do negro, súbita no pensamento que desliza do copo para a palavra. Julgo lembrar-me de ouvir um “Velvet! Yeah!” em modo grito-falado, mas talvez tenha sido o gesto de aprovação que fez ao ouvir os primeiros acordes que me despertou os sentidos – afinal, a memória sempre ficciona sob o cunho da conveniência.
Chega o Rafael, fecha-me a escrita e trocamos cumprimentos, novidades da semana. A noite cai e o roteiro parece levanta-se, tornando-se claro: fazer o percurso de bares inscrito no hábito. O plano é cortado à navalha quando Mónica se dirige à mesa (parece conhecê-lo, “prazer em conhecer-me”) e diz haver aquele sítio, aquela pessoa, aquela bebida, aquele qualquer sacrilégio da anunciada mudança de planos – acho que a palavra snooker, algures no discurso, assusta especialmente o meu amigo. Estendo-lhe um esgar de coragem e atiramo-nos à noite, só adiada pelo meu copo inacabado sem pretexto do dele que ainda não tinha sido pedido.
Encontramo-nos no interstício da rua, entre uma mão cheia de bares conhecidos e uma ideia fixa na voz feminina que nos arrasta para lá do que conhecemos. A calçada é menos calçada por nós que pelos pés determinados que nos levam a um palco de mesas, copos e um guisado de guitarras que sabem a Sonic Youth à beira do Príncipe Real.
A Mónica é amiga do DJ, da barmaid e de uma mesa a que quatro mãos nos atrai sem opção. Não há snooker e parece que o erro de entendimento deixa o Rafael mais descansado. Ao compormos a mesa, percebemos que somos todos amigos imediatos ou em segundo, talvez terceiro grau. A noite de Lisboa é isto: a tua amiga é minha amiga e, no limite, a amiga da tua amiga conhece o meu amigo. Há tabaco, álcool, outros fogos de artifício e a proximidade da partilha, com ou sem um golo daquele copo que acho ser meu, mas pode perfeitamente ser teu. Surge um novo episódio, algo chamado Auge, quando Mónica nos fala do bar seguinte. Estamos a ver o nosso percurso habitual de noite destruído e um novo roteiro a caminho. O meu alter ego de escritas solo decadentes sente-se ameaçado, o que nos dá, a mim e à minha fome de novidades, uma porta de entrada no desconhecido.
Saímos e dirigimo-nos ao Auge a quatro mãos, aparentemente um bar gay, certos que as sexualidades são mero plano de fundo para um novo poiso repleto de boa música e de uma nova ambiência. Não nos demoramos muito, porque o Incógnito só vive até às cinco e a exploração da noite é um episódio que não invalida o estabelecido.
À porta da caverna derradeira da noite, o guardião com nome de mosqueteiro não pede tributo para atravessar a ponte e, passadas as cumplicidades da entrada, somos cinco cavaleiros andantes, prontos para a batalha que o groove anuncia. Dentro, são poucas as mesas, muitas as cumplicidades, demasiados os copos. Entre dois, penso ver-te e és, de facto, tu: a crónica anunciada que me ataca os sentidos com sorrisos do tamanho de encontros passados e de outros adiados, ofertas de aventuras estéticas quando me contas as novidades do tempo intermédio, e passes de dança que só podem ser os teus. Há a maré alta de uma cumplicidade maior que rebenta nos ouvidos, decorada pelo som do DJ, e a de quem retribui com a espuma própria. São encontros que fecham ciclos e validam a noite, que arredondam enredos de uma narrativa que se aproxima do momento derradeiro.
À saída, na quinta hora do fecho, quando os apelidos sobreviventes se encontram à porta da despedida, só restam as feridas do cansaço e o travo agridoce do fim, compensado pela certeza de que o fim não é mais que mero prelúdio para outros princípios e de que o reencontro se irá repetir em breve. Sei que o dia seguinte não será fácil, mas quando a vida é fácil não se cumpre, não encontra justificação; é um bar vazio, um grito mudo sem DJ, alimentado por copos igualmente vazios e pretextos inválidos. A noite já foi uma criança; agora de idade avançada, fecha o dossier, guarda-o no arquivo do efémero e aguarda, expectante, o momento seguinte; belo, porque desconhecido.