E chega domingo e com ele o último dia do festival. A caminho do recinto tento recordar-me de tudo o que vi, acusando já algum cansaço nas pernas de percorrer aqueles quilómetros e esquivar-me às filas.
Há qualquer coisa de íntimo e sexual em ver um concerto no meio de tanta gente, partilhar aquelas músicas com desconhecidos e esboçar sorrisos em todas as direcções, mas não consegui até agora sentir essa aprovação. Falta intimidade num evento destas dimensões.
Vou directo ao palco principal para ouvir os Linda Martini, banda que não será da minha geração mas eu tenho uma estória para contar. Há uns anos atrás, uma das mulheres que me passou pela vida deixou-me mais que um coração partido, entretanto remendado. Um CD de quatro faixas de uns portugueses, pós-punk e feedback com fartura, letras-revolução em português e melodias com uma brilhante dose de melancolia.
Aos primeiros acordes há um forte arrepio que se iria prolongar por grande parte do concerto. Ao vivo, estes três rapazes e rapariga são qualquer coisa de especial e sentes que fazes parte de algo maior que este recinto todo. Quando chega Amor Combate entro em transe, e no final do concerto fico uns minutos a digerir. Há alguma postura de estrela rock mas que não lhes fica mal, o vocalista às tantas cai no chão e ali fica alguns segundos, mas no seu todo este foi aquele concerto que me fez sentir realmente especial, memórias aparte, claro.
Quero um Ácido para Acompanhar, Por Favor
Findo o concerto rumo ao palco Clubbing e oiço um bom bocado do Zé Pedro Moura que, tal como a Yen Sung ontem, não arrisca. Hoje sente-se mais a luz do dia e consigo observar que o recinto a esta hora está mais cheio que no dia anterior. Hora de jantar, hoje mais cedo.
Vou digerir os noodles com uma cerveja a caminho do palco principal onde se apressa o início de Tame Impala, uma das bandas que o Carlos me obrigou a ir ver. Encontro o meu lugar junto à mesa de som e rendi-me.
Ora aqui está uma banda que iria pôr Woodstock à beira do êxtase. Nestes rapazes mora o psicadélico perfeito dos sessenta com uma dose do prog dos setenta muito bem afinada. O senhor vocalista ataca a sua Rickenbacker munido de pedais que elevam o som até aos confins da galáxia, há aqui muitas ideias e dinâmicas que elevam a música dos Tame Impala a um estatuto intemporal. A pop surge em doses generosas e concluo o concerto com uma verdade, não quero saber dos Jefferson Airplane, Tame Impala vai estar tatuado aqui no peito. Que som do baralho, valha-me o Jimmy.
Com a minha fome de guitarras saciada, é tempo de tentar ir ouvir outra coisa. Parece que o reverb ainda está cá dentro dos ouvidos. Apetecia-me ir para casa ouvir King Crimson. Perdido em pensamentos de LSD e sexo ao ar livre nem dei por ela passar.
Ao Terceiro Dia, a Salvação
A Telma devia estar a observar-me há uns bons momentos porque quando se aproximou estava com um sorriso bem divertido. Fiquei tão impressionado de a ver que me esqueci onde estava. A primeira coisa que balbuciei foi um vago "Estás aqui sozinha?". Abraçámo-nos e reparo que ela tem uma pulseira prateada.
"Isto é entrada na zona VIP", diz-me. "Eu acho que consigo arranjar uma, queres?" Se isso significar passar uma hora contigo, Telma, aceito tudo, até passear-me no meio das pessoas insignificantes.
Não consigo recordar-me de todos os pormenores, mas andei pelo labirinto do festival de mão dada com a Telma, e não fosse a minha confusão toda e estaria a lembrar-me de uma altura em que as mãos coladas passeavam por outros filmes. O que interessa para a estória é que coleccionei mais uma pulseira e enquanto os Phoenix atacavam o palco principal eu estava numa zona VIP com mais umas mil pessoas. A Telma nunca perde o seu sorriso e sabe ler-me melhor que eu sei escrever-me.
Desaparece durante uns segundos e eu fiquei sozinho no meio dos pavões. Felizmente que a espera não foi muito longa.
Parece que o vi ao longe como uma aparição, como se o céu se abrisse e um raio de sol incidisse directamente no copo. Uma deusa segurava a minha salvação, o néctar dos deuses, das poucas coisas que me faz ter algum apreço pela vida.
A Telma segurava um gin tónico nas suas mãos, o vermelho das suas unhas contrastando com o borbulhar da água tónica e o verde do pepino que nadava num mar de alegria. "Há poucas coisas que me fazem felizes, uma delas és tu e outra é um gin."
Sorvo quase metade da bebida num segundo e, findo o meu primeiro saciar, olho a Telma e quase a beijo. Olhamo-nos intensamente e o dourado da sua aliança parece fazer uma barreira invisível entre as nossas bocas, mas isso nunca nos impediu de trocar uma intimidade amiga. Abraçamo-nos e eu sinto-lhe o cabelo e aquele aroma quase me faz desmaiar e entrar no domínio dos sonhos, não fosse eu ter uma missão a cumprir e desfalecia. Este Hendricks terá que ser saboreado dignamente.
A Telma desapareceu tão rapidamente como apareceu, e eu já estou habituado às fugas neste festival. Disse-me que tinha que ir a um sitio e eu faço-a prometer que voltamos a ver-nos em breve, promessa que não irá ser comprida, tal como aquela promessa que fiz há uns anos atrás.
Encontro a saída da zona VIP e desembarco num mar de gente sem fim. O concerto dos Kings of Leon está prestes a começar. Com dificuldade encontro a saída e rumo ao palco Clubbing, mais vazio e, portanto, melhor para a minha alergia a multidões. Segurava o copo de gin bem perto de mim quando alguém me puxou o penduricalho com força.
O Teu Coiso está a Arder
Era o Carlos, esse desgraçado não perde uma boa folia. "Andas de Martini na mão?" Olho para ele sem perceber. Explica-me que aqui só servem martini ou cerveja. Nem tinha reparado, disse-lhe. Ele dá um golo no copo e pergunta-me como consegui arranjar gin neste festival. Eu disse-lhe que tinha sido uma deusa a presentear-me.
"Tu e o gin são inseparáveis, é uma relação que consegues manter, ao contrário de todas as outras."
Enquanto toca o Daniel Avery vamos pondo a conversa em dia, a quantidade de rabos que vimos e também as bandas, claro. Disse-lhe que os Tame Impala me convenceram e ele rouba-me o gin em aprovação.
Uma rapariga que devia ter metade da nossa idade aproxima-se e fica perto do Carlos. Nunca a tinha visto. Ele inventa uma desculpa e apresenta-a dizendo que tem mais que fazer que aturar-me. Aceno a mão em jeito de despedida e eles lá partem rumo ao palco principal. O meu dever de jornalista, mesmo que só por uns dias, chama-me e faço o mesmo, tentando encontrar um lugar vazio naquela enchente. Parecia que a multidão dos dias anteriores se concentrou toda ao domingo. O único lugar livre que havia era junto a uma barraca de preservativos e achei que era apropriado.
Kings Of Leon, rock másculo mas com demasiadas canções orelhudas. Ao meu lado um grupo diverte-se a agitar os seus telemóveis inteligentes e lá ao fundo muita gente faz o mesmo. De quando em quando há um grupo que se vem colar mesmo à minha frente e eu vou-me afastando. Um gajo ao meu lado não para de gritar "Sex" em altos berros. Depois de estar nisto uma meia hora, agarrei-o e apontei para a barraca dos preservativos, mas ele liberta-se com um safanão porque o encore deu-lhe a satisfação. Afinal era uma música. "Your sex is on fireeeeeeeeee" gritava-se pelo recinto. Decidi então que o título do meu próximo livro se iria chamar Genitais em Fogo.
Saio antes do fim da música para evitar ficar preso numa sanduíche de gente, porque poderia ficar no meio de um grupo de homens suados e isso não era a minha ideia de diversão. No clubbing estão dois tipos a passar discos, creio eu, e a multidão delira. Consulto a programação e vejo que a outra banda que o Carlos me afirmou ser decente iria tocar. Péssima ideia.
Um Caixote no Meio da Gente
Sou apanhado na multidão que se desloca para o palco Heineken que já está a abarrotar. Coloco-me o mais próximo da régie e à minha frente estão dois ingleses sentados num contentor do lixo. Quando o concerto começa abanam-se lá em cima e previ uma desgraça. Um puto passa e dá um valente pontapé no caixote que não foi ao chão. Outra rapariga passa e faz o mesmo, mas o caixote continua no sítio. Ao lado do caixote do lixo está um casal que troca beijos e eu consigo ver um emaranhado de línguas salivadas. O caixote continua no sítio e eu decido que tenho que prestar atenção ao concerto.
Django Django atacam um rock assim para o pop e eu concedo-lhes quatro músicas do meu tempo mas os meus ouvidos não estavam a aceitar. Provavelmente já estava saturado de tanta coisa para ouvir ou talvez tenha ficado saciado depois de Tame Impala e de um Hendricks (ou se calhar foi o abraço).
Estaciono no Clubbing, bem mais arejado, e fico por ali um bom bocado. A música deambula entre o electro, o house e o acid, a fazer lembrar alguns momentos numa discoteca da capital. Aproveito para finalizar as minhas notas.
Depois de três dias a ouvir música desconhecida (e alguma conhecida) fico com a sensação que não vi absolutamente nada. Não fossem as notas que recolhi e AlunaGeorge, Deap Vally, Yellow, Vahagn & The Sky People, Jurassic 5 ou Tame Impala ficariam esquecidos nos confins da minha memória. Muita informação para digerir e muita coisa para observar, dos casais de final de noite perdidos num qualquer canto às meninas de lábio pintado e calça de ganga reduzida a mini-calção, quanto menor a idade menor a roupa.
Mas no final há um sentimento que subsiste. Andar por aqui e observar o fenómeno e ainda descobrir alguma música nova é uma boa forma de passar uns três dias de férias do resto do mundo, escapar-me da escrita e do gin e aterrar num mundo diferente. Apesar de chegar ao fim do festival e ter ficado com a ideia que afinal sou igual a esta gente toda, adoro música e estou atento aos concertos, mas a distracção é mais forte e acabo por deixar a música para segundo plano.
No caminho para casa guardo a credencial no bolso do casaco e atiro as pulseiras para o caixote do lixo. Já em casa acendo um cigarro e, bem acompanhado com um Bombay tónico, começo a escrever a estória que vocês querem realmente ler.