(Gin Atómico #9)
O sol começa a aquecer e de repente toda a gente está muito ocupada, como se o calor tornasse o zé-ninguém em empresário de sucesso internacional. Quilos de turistas invadem a cidade e tiram fotos a tudo como se tivessem memória de peixe. O Chiado está impossível, parece que toda a gente se lembrou de cantar nas ruas e o barulho é ensurdecedor. Restaurantes reproduzem-se como baratas numa cave e em cada esquina há uma casa de hambúrgueres "caseiros".
Absorto e soltando umas asneiras valentes, passeio-me pela baixa observando tudo à espera que a inspiração apareça tal qual a Nossa Senhora aos pastorinhos mas isto não é a Cova da Iria nem há cogumelos mágicos por perto.
Dou por mim a subir à Graça e a entrar na Feira da Ladra com a camisa colada ao corpo tal é o calor insuportável. Sou recebido pelo habitual "Space Cakes! Magic Cookies" do costume à entrada do arco e dou dois dedos de conversa ao Pan Sorbe que se posiciona por baixo do chapéu de sol para vender as suas antiguidades. Dou uma vista de olhos pelos discos e sinto umas mãos de fada a roçar-me as costas.
Volto-me lentamente e vejo uma figura divina, abençoada pelo sol escaldante que lhe confere um halo de importância cósmica.
É a Telma.
Fico parado uns segundos a tentar fazer conversa de circunstância, ela parece contente por me ver e sou logo arrastado para o meio da confusão enquanto conversamos.
Já não via a Telma há algum tempo por isso faço as perguntas do costume: Como estás?, já te separaste daquele totó?, quando é que vais lá a casa que tenho uns lençóis novos?
Paramos no café a pôr a conversa em dia e lembro-me que sempre que olho para ela pergunto-me como é que deixei escapar a mulher da minha vida num episódio de loucura literária. Apresenta um vestido de padrão às flores, curto o suficiente, e o cabelo vai solto, ondulado, a cair-lhe pelos ombros graciosos que parecem convidar os meus braços. Os lábios sempre carnudos são humedecidos a cada frase numa característica muito sua e sinto uma sede repentina.
Ela repara no meu olhar desajeitado e cora ligeiramente.
"Então, pensava que estavas apaixonadíssimo por aquela rapariga, como é que ela se chama?"
"Tânia"
"Isso. Pensava que eu já não te fazia esse efeito."
"É do calor."
"E o teu livro, já acabaste?"
"Não consigo, a minha musa foi-se embora"
"Ah, qual delas? Aquela loira ou a mais velha, aquela que conduzia o BMW?"
"Aquela que está sentada à minha frente"
Ela dá um gole na coca-cola e ri-se de mansinho.
"Deixa-te de tretas, já se passou demasiado tempo para continuares com essas parvoíces. E pára de olhar para o meu decote, se faz favor!"
"Desculpa, estou cansado e a cabeça cai-me"
Ela ri-se e dá-me a mão. Olha-me fixamente os olhos a tentar perceber o que se passa cá dentro; ela sabe que eu estou a gozar mas nunca conseguiu verdadeiramente ler-me, nem nas palavras que escrevia.
Por mais que o tempo passe ou a chuva lave todas as memórias, a certeza desta atracção é mais forte que as equações todas do mundo. Nunca nos separámos realmente, apenas seguimos caminhos diferentes.
Ela diz-me que tem que apanhar o 28 e por isso vamos juntos no eléctrico, conversando sobre o tudo e sobre o nada. Saímos na mesma paragem e caminhamos até à minha porta, caminho tantas vezes percorrido numa vida passada que partilhámos.
Há um segundo de hesitação, mas logo me recomponho e pergunto-lhe:
"Um último gin, como nos velhos tempos?"
Ela sorri, dá-me a mão e diz-me que não com os olhos mas eu já abri a porta.
"Só um, tenho que me despachar"
"Sei que nunca conseguiste resistir aos meus gins"
Um gin logo se multiplica em dois, e a conversa torna-se animada. Ela goza com o meu apartamento que continua na mesma, chega mesmo a revirar algumas gavetas e a confirmar que eu sou um homem pouco dado a mudanças.
Estamos já no chão da sala a ouvir uns discos e a recordar episódios do passado enquanto a tarde lá fora espreguiça-se sem pedir licença. A conversa cai nos anos que passámos juntos e gozamos com os trejeitos um do outro. A forma como ela arrumava a minha roupa ou a minha insistência em apagar todas as luzes da casa irritando-a solenemente. Aquela viagem a Itália ou a sessão de autógrafos do meu livro que acabou na sala com duas garrafas vazias e dois corpos nus no chão.
Apesar de todas as memórias a aliança que ela exibe no dedo é como uma força magnética que me afasta e me entristece, apesar da certeza do final trágico, apesar da certeza que a separação era a única solução.
Apesar disso tudo e talvez com a ajuda do terceiro gin, inclino-me lentamente e beijo-a, distraída.
O momento fica suspenso, os olhos dela brilham de surpresa e depressa se transformam em lágrimas. Tal como todas as vezes que tomei decisões na minha vida, este é mais um disparate.
Ela levanta-se ao fim de alguns segundos e foge para o quarto. Soluça ao longe e eu fico especado na sala a desejar não ter feito nada. Tinha que estragar tudo, para variar.
Levanto-me e sigo-a ao quarto onde ela está de pé junto à janela limpando o rosto.
"A única razão porque continuo a falar contigo foi a tua promessa de nunca mais me voltares a tocar. Tens muita lata, depois de tudo o que aconteceu, de mexeres comigo como se eu fosse uma das tuas personagens"
Ela volta-se para mim e o seu olhar é de raiva.
"Como é que queres que eu reaja, depois destes anos todos e depois de me teres dito, naquela sala se bem te recordas, que por mais que tentasses nunca irias conseguir viver comigo? Que comigo nunca irias conseguir escrever nada?"
Senta-se lentamente na cama, limpando as lágrimas com a mão.
"A única razão porque escreveste aquele livro que te deu tanto sucesso foi porque já o tinhas começado quando não me conhecias. Fizeste a tua escolha e eu fiz a minha."
Tento recordar-me de algo estúpido para dizer, mas escrever é bem mais fácil. Aproximo-me da cama e faço o que sei fazer melhor, estragar ainda mais a situação.
Agarro-a e atiro-a para a cama com força, soltando uma das alças do seu vestido enquanto a beijo sofregamente. Empurro as suas costas contra mim e cravo-lhe os dedos na nuca.
Ela afasta-me com força e coloca-se em cima de mim, prendendo-me os braços com uma mão enquanto a outra desabotoa a minha camisa.
Quando o vestido dela já está a voar pelo quarto aproxima-se e sussurra-me ao ouvido:
"Odeio-te, sabes?"
Desembaraço-me do resto das roupas e há um pequeno segundo de hesitação, como se alguma intervenção divina me fizesse ter um pingo de consciência pelos meus actos. Mas a vontade de tomar este corpo que tanto me atormenta os sonhos e as palavras é mais forte.
Devia ter mesmo ouvido a intervenção divina porque ao longe a porta da rua abre-se sem cerimónias.
Passos pequenos e apressados aproximam-se do quarto e nós não ligamos.
Uns olhos pequeninos e um cabelo encaracolado espreitam à porta.
A Tânia aproxima-se mais da cama e olha-nos com curiosidade e espanto.
Eu sabia que lhe devia ter pedido as chaves de minha casa de volta.
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