DIÁRIOS DO UMBIGO

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Jardim Sonoro, Sábado

Levantei-me relativamente cedo no sábado, tropeçando na garrafa de Martin Millers da noite anterior. A Tânia dormia no quarto pacificamente, as gotas da chuva entravam de mansinho pela janela ligeiramente aberta e eu adivinhava mais um fim de semana pacato a ouvir Coltrane e dedicado aos prazeres da carne.

Entretinha-me a encher o meu Zippo cuidadosamente, um ritual muito preciso que um homem tem que fazer em solidão, quando o telefone toca ameaçadoramente.

Tropeço mais uma vez na garrafa e aos solavancos lá antendo o telefone. Era a Elsa.

Missão de última hora: ir ao festival Lisb/On no Parque Eduardo VII. Tentei explicar à Elsa que não podia, tinha que encher o meu Zippo, mas ela não acreditou. Acordo a Tânia e descemos até ao parque, passando por casa do Carlos para lhe roubar a máquina fotográfica digital. Na entrada recebemos o devido penduricalho, vulgo acreditação, e uma pulseira verde muito sci-fi.

Com pepino, Desde que Cheio

O meu primeiro contacto com o festival foi o mais positivo: Hendricks logo à entrada. Tratei de me aviar mas explicaram-me que era preciso carregar a pulseira. Pouco habituado a estas coisas lá percebo o esquema: carregas a pulseira com o montante desejado e vais pedindo até esgotares o saldo. Tipo multibanco mas não tens que decorar códigos. Se inventarem uma coisa destas para Lisboa inteira serei o primeiro cliente.

Mais refrescado, descemos até ao palco para ouvir a segunda banda do dia, uns velhos conhecidos Vahagn & the Sky People que já me tinham aberto os horizontes o ano passado em Algés.

Vahagn-&-The-Sky-People_1

Tocaram pouco tempo, ou talvez fosse a minha azelhice a domar uma máquina fotográfica e um Hendricks na mão. A Tânia gostou bastante. Aquele jazz dos confins da galáxia agarrado à House e bem regado de psicadelia funciona em qualquer parte do mundo. Se estes senhores não gravarem um disco brevemente faço greve de gin.

O recinto àquela hora está meio vazio mas há uma atmosfera familiar que não perturba o céu carregado e a lama que invade a relva sem cerimónias. Pessoas mais velhas, uma ou outra cara conhecida, sorrisos entre as nuvens. Este recinto é um oásis no meio de Lisboa e que bem que sabe ouvir música boa durante o dia. Não sei porque é que insistem em fazer concertos à noite.

Moullinex_2

Moullinex atira-se ao palco enquanto finalizo o Hendricks. A Tânia diz-me que ele é só um mas eu vejo três rapazes barbudos em palco (e só tinha bebido um gin ainda). Enérgico e orelhudo, competente, o homem da máquina de costura tem muita pinta mas apesar do à-vontade dos elementos que trocam de instrumentos como se estivessem num clube de swing, o concerto pareceu-me algo robótico. Provavelmente precisava de outro gin para saborear melhor a coisa.

As pessoas vão entrando a conta-gotas, como seria de esperar, já que o povo tem prazer em chegar atrasado a tudo. Deambulo pelo recinto tirando umas fotos, a Tânia desaparecida algures, encontro malta conhecida que faz sempre a mesma pergunta (e o novo livro, já terminaste?) e vou olhando para o céu à espera que chova.

A Música Negra tem Mais Emoção

Dam-Funk_4

Regresso ao palco para ver Dâm-Funk. O senhor faz jus ao nome, integrado num trio de envergadura sónica fabulosa. Acompanhado de um baterista e de um baixista que tanto gosta das cordas como dos sintetizadores, o senhor Dâm-Funk ataca um funk sedutor, psicadélico, que dá logo vontade de agarrar a miúda mais próxima. Como a Tânia continuava desaparecida, tentei aproximar-me da gira que estava ao meu lado mas não tive grande sorte. O baixo entra na relva, ressoa, chega ao tórax e volta ao palco. Sinto-me completamente rendido.

Quando Dâm-Funk fala na sua voz rouca nós ouvimos. A multidão responde-lhe e ele diverte-se, sempre em sorrisos, agradecendo o apoio dado pela nossa rádio à sua música. Assegurou-nos que o álbum novo sai em Janeiro por isso estejam atentos. No final toca uma música nova, já mais próxima da House, e quando dou por mim já estava em frente do palco e as minhas ancas mexiam fervorosamente ajudadas pelo excelente sistema de som.

O Meu Disco é Mais Antigo que o Teu

Agora sim, o recinto já está composto, apesar das nuvens ameaçadoras. A Tânia encontra-me e pergunta-me se já tinha tirado fotos a miúdas giras. Entrega-me um presente: um Hendricks bem fresquinho. Agora sim, pode avançar o próximo senhor em palco.

Moodymann_1

Ora o próximo senhor é um senhor DJ, Moodymann, que envergava um curioso panamá daqueles da pesca. O seu set é ecléctico, forte, mágico, de Isaac Hayes ao Italo-Disco passando por Peter Frampton e Led Zeppelin. Pausa frequentemente para nos perguntar se está tudo bem e a malta responde-lhe, dançando em mil sorrisos, ansiosa para que Moody continue a mostrar-nos os seus discos vindos directamente de Detroit. Ao passar o Ike's Rap II do Isaac Hayes, afirmou que a sua mãe costumava tocar o disco lá em casa. E eu acredito. A multidão responde fervorosamente, recordando o sample que os Portishead usaram em Glory Box. Eu até sei umas coisas.

Não há aqui presunção; o senhor toca o que lhe apetece contando uma estória de groove sem cerimónias. Ninguém fica indiferente, todos em úníssono numa dança cósmica e sinto-me parte de algo especial. Aterrar aqui nesta clareira de árvores, relva e Hendricks, com malta da minha idade e sem histerismos ou vedetismos, ouvir a melhor música do mundo e dançar com corpo e mente.

A Chuva Também Dança

Enquanto Moody toca o seu último disco tenho um momento para reflectir. Há muito que me apetecia estar assim num jardim, durante o dia, a ouvir música negra em comunhão com as pessoas e a natureza. Certo que já existe Out Jazz, mas há aqui neste Lisb/On uma certa natureza de exclusividade como se todas as pessoas aqui presentes fossem escolhidas a dedo para desenhar o evento perfeito. Tudo funciona sem sobressaltos, apesar do recinto poder levar mais pessoas, mas até isso parece ter sido desenhado criteriosamente. Os concertos são variados mas todos assentam na mesma permissa: dançar e elevar o espírito.

Enquanto o senhor que se segue ataca os botões sinto aquele aperto no estômago e arrasto a Tânia para a zona das comidas.

Infelizmente só existiam três "restaurantes" e todos eles cheios. Decido fugir à francesa, com cuidado para que a Elsa não me veja, enquanto o Isolée trata da sua martelada que, após o groove do Moody, não me caiu lá muito bem.

Se perguntarem, digam que eu sou alérgico à chuva que já começava a cair.

Saio do recinto com a chuva a molhar-me a camisa, de mãos dadas à Tânia, quando tenho um ligeiro pressentimento que a noite não ia acabar tão cedo.

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