DIÁRIOS DO UMBIGO

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Fotografias dos concertos: Alípio Padilha.
Fotografias do ambiente: João Luís Amorim.

Sábado é dia de Sol & Francesinha. Depois de bem alimentado trato de tratar da escrita e em seguida rumo ao Parque da Cidade para o último dia.

Nota-se muito mais gente a esta hora que nos outros dias, por ser fim-de-semana e por estar um tempo mais agradável. Apesar do cansaço, sinto me verdadeiramente em casa neste festival. Há sempre coisas boas e improváveis para ver, um ambiente simpático, anfiteatros naturais e uma relva imensa que abençoa qualquer género musical.

Ficas a Tocar Sozinho

You Can't Win, Charlie Brown já tocam no palco principal com uma alegria contagiante que abençoa a multidão sentada na relva. Crianças brincam no imenso verde e todos tiram fotos contando aparecer algures no infinito (e desconhecido, para mim) mundo das internetes.

Sigo para o palco da cerveja munido de um gin para ver o Lee Ranaldo. Sejamos francos, depois dos Sonic Youth não há mais nada. Ver aquele veterano da guitarra a cantar é algo de assustador. Não que o homem cante mal, mas aqueles refrões orelhudos são uma valente seca. Bom é quando ele trata de por as suas guitarras transformadas bem junto do amplificador para uma dose sónica de poder mas depois volta ao microfone e está tudo estragado.

Solto um valente "ó Ranaldo, vai à merda" e viro costas ao senhor.

Deambulo pelo parque observando a fauna, contando os minutos para os Neutral Milk Hotel. Há uma atmosfera de espectativa no ar para visitar estes senhores, pelo menos eu sinto isso. Estranhamente, conheço bem as outras bandas da Elephant 6, os Apples in Stereo, os Olivia Tremor Control ou os Circulatory System mas nunca me deu para ouvir a banda do senhor Jeff Mangum. Esta é uma estreia absoluta.

O Céu é Mesmo Aqui

Posiciono-me o mais à frente que consigo e as primeiras palavras do senhor Mangum são para os parvos que insistem em tirar fotos e filmar. "Este é um concerto entre mim e vocês, desliguem essa merda" (tradução livre).

Ataca a sua guitarra acústica para tocar Two Headed Boy com uma força de leão, sozinho no palco. As suas cordas vocais enchem aquele anfiteatro natural com um poder sónico que eu nunca tinha sentido. Todos os centímetros do meu corpo reagem em uníssono logo aos primeiros acordes. A multidão lá à frente canta em coro e sinto uma verdadeira comunhão, como se estivesse num daqueles momentos irrepetíveis que ficam guardados cá dentro para sempre.

A banda entra no final da música e aquele grupo de personagens estranhas enche a muralha sonora com uma profunda estranheza visceral, os arranjos alienígenas dos sopros, acordeão e, imagine-se, uma serra.

Talvez o facto de não haver video nos écrans laterais, ou a insistência de Mangum em que não se filme (estive quase à porrada com umas estrangeiras à minha frente que desobedeciam às ordens). Talvez a primeira estranheza em ouvir estas músicas pela primeira vez. Talvez a tarde que caía ou a lua que já abençoava os céus do parque.

Ou talvez pequenos momentos. A primeira audição da serra falante, cortesia do baixista com um carapuço à personagem de desenho animado que saltitava incessantemente, o baterista que perdia baquetas no ar com uma facilidade incrível (saltaram-lhe umas 3), o barbudo dos sopros que cantava todas as letras de cor fora do microfone. A menina do acordeão e saias compridas à rapariga do campo.

O concerto terminou mas o arrepio continuou. Tive verdadeiramente a sensação de estar fora daqui, transportado para um qualquer sítio remoto a assistir pela primeira vez à criação do mundo.

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Sangue, Suor & Funk

Absorto, não conseguia pensar em nada, inebriado pela comunhão cósmica que tinha assistido. Foi, até ao momento, o concerto do festival. O gin ajuda ligeiramente a assentar as ideias, enquanto deambulo pelo parque com o ouvido ainda posicionado naquela voz imensa do Jeff Mangum. Páro no palco ATP para ouvir um bocado dos Standstill e foi engraçado ouvir espanhol pela primeira vez num palco do festival.

Os National já tocam no principal por isso é uma boa oportunidade para ir saciar a fome com uma bifana da Conga. Aquele picante acordou-me e olhando para o relógio constato que são quase horas do outro homem da noite, Charles Bradley.

Rumo ao palco ATP com o café na mão, passando pela multidão mais compacta que nos outros dias e posiciono-me o mais à frente que consigo mas não consegui ficar lá muito tempo sem me sentir como um atum entalado numa lata de conserva por isso venho cá atrás para o meu sítio favorito: junto da mesa de som. Perfeito. Tenho espaço para abanar a anca e tudo.

Primeiro entra a banda, como manda a tradição, e anuncia-se o homem soul, o enorme Charles Bradley, cortesia do pianista maluco. Banda incrível, tocam com uma precisão implacável a lembrar-nos que sim, guitarras são fixes mas isto é uma verdadeira banda a tocar. Todos os instrumentos soam como deviam soar, a voz de Bradley posicionada correctamente ao centro, o ritmo bem assente numa muralha sonora de incrível potência soul, e os sopros calibrados ao expoente máximo.

O funk é delicado mas sujo, a soul é sentida e arrepia todos os poros da tua pele. Charles Bradley enverga primeiro um fato-cabedal vermelho, retirando-se pouco depois para voltar (após uma ovação incrível) envergando um fato preto. Movimenta-se como senhor do palco e nem parece ter quase 70 anos. A multidão enche esta zona recôndita do festival, todos rendidos à honestidade (e dança) deste senhor.

As lágrimas vêem-me aos olhos na recta final, onde Bradley canta a estória da sua vida sem a crónica e desinfectada pasmaceira das reportagens dos telejornais portugueses. Não há magoas, não há rancor, há uma mensagem tão positiva que chega ao fundo até dos mais cépticos e acreditamos quando Bradley nos diz que vai tocar "só um bocadinho" da sua canção favorita.

As lágrimas não secam quando o palco está a ser desmontado, e fico ali uns minutos a pensar que ao terceiro dia tinha tido uma experiência quase religiosa. É por estes momentos que insisto em ser transformado pela música, ouvindo tudo como uma criança que descobre a música pela primeira vez. Os cépticos dirão que assitiram a um revivalismo bacoco, eu respondo-lhes que ouviram Música. Quem não se sentiu transformado pelo poder de Charles Bradley e da sua banda não merece dizer que gosta de música.

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O Resto é Dança

Foi bastante difícil retomar à programação habitual depois de dois concertos tão profundos. Ainda tentei assistir a um bocado da St. Vincent, mas aquilo pareceu-me uma parolice de primeira linha, uma teatralidade tão falsa que ia estragando a aura de positivismo dos concertos anteriores. Como é possível assistir a um concerto tão feérico depois da brutal honestidade de Mangum e Bradley? Estava a ficar mal-disposto e quase me esqueci que os Slint estavam a tocar no ATP.

Consigo ainda ouvir algumas músicas e reconhecer que as guitarras em lânguidos suspiros de depressão são das melhores coisas que existem. Outra banda desaparecida dos 90 que agora regressa (os "críticos" da música vão dizer que este é o festival dos alternativos retornados) mas, tal como os mais antigos a tocar no Primavera, Television, o poder das canções apaga qualquer ideia profana.

Rumo ao palco principal, com a alma cheia de grandes concertos, para reflectir três dias intensos ao som da dança dos !!!.

Não há volta a dar. Aos primeiros acordes já tenho o casaco no chão e abro um buraco à minha frente para dançar confortavelmente a minha dança de baleia fora-de-água. O Alípio junta-se a mim e conseguimos contagiar toda a gente à volta. Estamos bem lá à frente, incitados pelo frontman de calção curto e pose mais arriscada que Mick Jagger: Nic Offer não pára quieto e é mais o tempo que passa no meio da multidão que em cima do palco. Oferece toalhas ao público, desapertam-lhe os botões da camisa, transpira em frente às câmaras numa sensualidade desajeitada muito característica.

Antes do regresso ao hotel há tempo para uma paragem rápida na Conga para a última bifana enquanto reflicto os três dias de música que passei no festival.

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Se a Bifana da Conga Regressar, eu Também

Houve tanta coisa boa para ouvir e nunca me senti defraudado. Certo que há coisas que podem ter irritado o meu ouvido como St. Vincent, Lee Ranaldo ou Pixies mas tudo o resto compensou. O hip-hop sedutor e transpirado do Kendrick Lamar, o rock cósmico do Fõllakzoid, o caribe dos John Wizards, o disco-funk dos !!!. E os grandes concertos, aqueles que ficarão para sempre cravados cá dentro.

Os Television a tocar um dos meus discos favoritos, os Neutral Milk Hotel cravados a sangue, Charles Bradley a embalar as minhas lágrimas. Todos estes momentos naquele Parque, o Porto, os gins & as francesinhas, as bifanas da Conga, as meninas de lábios carnudos e flores no cabelo, a relva imensa e a chuva que acabou por não chegar. E claro, a razão de cá estar: a música. Toda ela relevante.

Em resumo, e acreditem que não sou destas coisas, já estou a pensar em chatear a Elsa para me trazerem cá para o ano. Muita coisa pode acontecer num ano, certamente, mas daqui a 20 ainda hei-de recordar estes concertos.

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