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Na apresentação de Fado Camané no Domingo passado, no Cinema Ideal, Camané dizia que “o Bruno de Almeida faz um documentário da National Geographic e depois manda o crocodilo falar sobre ele". Foi uma brincadeira num jogo de "empurra o microfone", mas há qualquer coisa de certeiro nesta analogia.

Tal como um documentário da National Geographic tenta captar a essência do animal em estudo, também este filme é sobre a procura da verdade. Em primeira instância, da verdade de Camané. Numa leitura paralela, da verdade num sentido mais lato.

O documentário é fruto das gravações de Sempre de Mim, disco editado em 2008. Produzido por José Mário Branco e com poemas de Manuela de Freitas, David Mourão Ferreira, Fernando Pessoa, Pedro Homem de Mello, Luís de Macedo e Jacinto Lucas Pires, este trabalho foi considerado um dos melhores e mais completos do fadista.

Entre melodias de fados tradicionais, uma composição espontânea de José Mário Branco e algumas músicas inéditas de Alain Oulman (compositor fetiche de Amália Rodrigues) este disco é, nas palavras do próprio Camané, “sobre o amor nas suas mais variadas formas”.

Na entrevista que acompanha o processo de gravação (e que aparece intercalada com o mesmo) diz-se que sentir é como o fado: não se ensina, mas pode aprender-se; não se procura, mas encontra-se. É um caminho trilhado nas descobertas que vêm até nós quando tentamos ser o mais honestos possível na expressão do que nos vai na alma e no coração. Seja dentro de um estúdio ou na vida.

Em estúdio, o objectivo de Camané e José Mário Branco era fazer o casamento perfeito entre a música e a letra – a entoação correcta para cada palavra, a métrica certa para cada respiração, o acorde que sobe enquanto a voz desce. Tudo para que a interpretação fosse fiel à narrativa emocional de cada canção.

Sentados no escuro da sala de cinema a ouvir a voz sem fim do Camané, é impossível não pensar que esse é (ou deve ser) também um dos objectivo da vida: ser fiel ao que sentimos e contar isso aos outros da forma mais honesta, exacta e despida de artifícios possível. Para que não haja dúvidas ou mal-entendidos quanto ao peso dos sentimentos e das palavras que lhes servem de âncora. Sim, porque os sentimentos são uma espécie de vapor que precisa de algo que os contenha para definir a sua forma. As palavras são um frasco de vidro que os torna palpáveis.

E isto é das missões mais difíceis da vida: primeiro perceber o que sentimos, depois encontrar a melhor forma de o dizer para que a mensagem seja percebida como queremos. Como ponto de partida para esta missão, está outra tarefa igualmente importante e da qual também se fala em Fado Camané: não querer ser ninguém, nem soar a mais ninguém, que não nós próprios. Para encontrar a verdade de cada momento (e de cada música) é necessário completar esse processo de aceitação. “E isso eu já fiz na minha vida”, diz Camané.

Na impossibilidade de termos ao nosso lado um (enorme) José Mário Branco que nos vai guiando até ao destino, recorremos ao próprio Camané. Pedimos emprestado o fruto do seu trabalho para dizer por nós o que não conseguimos exprimir. Aquela voz vinda sabe-se lá de que profundezas ecoa no nosso peito, os pelos dos braços arrepiam-se e as lágrimas vêem aos olhos, porque inesperadamente reconhecemos ali – naquele momento, naquela canção – uma verdade que também é nossa, mas que ainda não tínhamos encontrado. A verdade é como o amor, não se procura. Encontra-se.

Mais do que um filme extraordinário, Fado Camané é sobre um fadista fora de série. Tão fora de série que fadista, cantor ou artista parecem termos demasiado pequenos para o classificar, mas temos que escolher um.

Tal como num documentário da National Geographic, a técnica do realizador está ao serviço da missão – captar a verdadeira natureza do objecto em estudo. Bruno de Almeida põe o seu cinema à disposição de Camané e, de alguma forma, até o anula em sua função. Mas, na verdade, não é preciso muito mais do que a interacção entre Camané e José Mário Branco para fazer deste filme uma obra conseguida. Tal como não é preciso muito mais do que a beleza do tigre (ou do crocodilo) para tornar um documentário fascinante. Basta estar lá, calado e quieto, mas atento e no sítio certo, a filmar o que importa. Tudo isso é cumprido aqui e é, por si só, uma forma de talento.

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