DIÁRIOS DO UMBIGO

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Fotografia: David James Swanson.

Cheguei ao teatro já em cima da hora, ao contrário do habitual. Mesmo assim, fui surpreendentemente bafejada pela sorte e encontrei o lugar perfeito: pertíssimo do palco, um tanto ou quanto descaído para a esquerda, no topo de um degrau que, para além de me elevar das poucas filas à minha frente, delimitava uma zona que por questões de segurança tinha que estar desimpedida. Visibilidade perfeita, portanto! A opção do encosto no corrimão foi o que me permitiu aguentar as 3 horas de pé sem maleitas de maior.

You Know That I Know 2

Durante a espera, optei por ocupar o tempo a observar pausadamente as pessoas à minha volta. Foi bom ver, por fim, um lugar tão densamente povoado por pessoas que emanam ares refrescantes, em oposição aos sombrios semblantes com que, por vezes, me cruzo nos meus trajectos diários. Havia até no meio da plateia um alegre e saltitante unicórnio branco! Passo a explicar: uma senhora de meia-idade decidiu ir vestida com uma acetinada capa branca que esvoaçava sobre o restante figurino também alvo, culminando na longa e ondulada peruca platinada e uni-corno no topo da cabeça. Unicórnia, portanto, e não unicórnio. As minhas desculpas.

O meu olhar desviou-se para o palco quando a longa cortina branca abriu por fim, revelando por entre o fumo branco o cenário tripartido de músicos impecavelmente vestidos entre os instrumentos prateados e cintilantes, imersos na infindável e gélida luz azul. De costas e imóvel no centro, semi-oculto no seu borsalino cinza, Mr. White ele mesmo fez soar estrondosamente os primeiros acordes de uma das minhas músicas preferidas do momento, High Ball Stepper. Comprei os bilhetes para este concerto estava ainda em Portugal, logo que soube que ele vinha tocar cá. Foi a primeira vez que o vi e a expectativa era elevada, admito, mas ainda assim saí do concerto absolutamente arrebatada.

Jack White veio em nome próprio, mas não deixou de nos presentear com vários temas das suas outras bandas, num concerto que adquiriu um inesperado tom de intimidade e proximidade com o público. Pelo que consta, tocou uma música composta no próprio dia, segundo os comentários nas redes sociais dos seus músicos, em resposta às desnorteadas dúvidas dos fãs nos dias seguintes ao concerto. Da minha parte, não posso dizer que me tenha perturbado tal ignorância, dado que passei o concerto de cérebro sereno apenas a reagir ao som irrepreensível, dançando e cantando copiosamente, de olhar fixo no palco, tentando não perder nada.

Mas, para mim, o momento alto da noite seguiu-se à perdida, e posteriormente recuperada, canção do Hank Williams, que White anunciou repetidamente como You Know... That I Know... That You Know... That I Know... That You Know... That I Know. Foi quando esta terminou que estranhamente o tempo desacelerou e uma brisa começou a soprar não sei bem vinda de onde. Num momento quase cinematográfico, o mundo à minha frente subitamente foi convertido em tons monocromáticos e os perfis suavizados em oníricos contornos ondulantes, quando delicadamente se começou a traçar o ambiente da música seguinte.

Havia já no ar uma estranha intimidade, quando um sinal aos músicos fez com que parassem de tocar. Era, agora, apenas entre nós. Sozinho em palco, abandonou a guitarra e deixou-a sem vida balançando pendurada no suporte do microfone. Suado e desgrenhado, saiu do ponto de luz que o iluminava e caminhou até ao abismo do palco. Parou em frente do degrau, do lado esquerdo, e nesse instante, não sei bem como, a sala esvaziou-se de repente. Sem nunca parar de cantar, embora sem músicos ou microfone, de olhar sério e queixo descaído, levantou os braços pedindo companhia. Desarmada e só, sorri e subi também os braços rendida. Qual Suzy Lee ressurgida, elevei a minha voz para terminarmos juntos:

“Tonight I'll dream while I'm in bed
when silly thoughts go through my head
about the bugs and alphabet
and when I wake tomorrow I'll bet
that you and I will walk together again
I can tell that we are gonna be friends
Yes I can tell that we are gonna be friends.”

O regresso a casa, pedalando a cruiser no cimo dos meus saltos altos negro-veludo por entre o parque, foi ainda a cantarolar de sorriso posto. No almoço do dia seguinte, lembro-me ainda dos olhares apreensivos, surpresos (preocupados?) perante o inflamado relato do que vi e vivi. Momentos assim enchem-me ridiculamente de energia e vida. Que venham mais. Muitos mais!

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