O verão chegou ao fim em Marraquexe e com o fim chegam as primeiras chuvas, talvez as únicas dos próximos meses, neste clima pré-desértico. Uma cidade após a chuva tem um charme particular ao ver-se reflectida em si mesma.
O verão que passou foi um verdadeiro carrossel entre idas e voltas entre Marrocos e Portugal, visitas daqui para lá, visitas de lá para cá. Quando em Agosto tive que sair de Marrocos para cumprir com a data limite da permanência do meu carro por cá, decidi fazer a viagem por pequenas etapas para incluir no percurso uma paragem que me parecia obrigatória: o Festival de Músicas do Mundo de Sines. De Marraquexe fui até Rabat para deixar o meu dossier de pedido de equivalência ao diploma do ensino superior, algo tão kafkiano como a extensão do nome do procedimento indica! A primeira portuguesa a obter a equivalência ao certificado do Ensino Secundário, a primeira portuguesa a fazer uma co-tutela com a Universidade de Marraquexe, a quase primeira portuguesa a obter uma equivalência ao diploma do ensino superior... não são tarefas fáceis. O caminho será mais fácil para os próximos.
A segunda paragem foi em Jimena no Sul de Espanha em casa da minha amiga Manuela e por ali rodámos um par de dias pela natureza, entre rios, praias e castelos que evocam os trânsitos que por ali andaram há vários séculos atrás entre o Magrebe e a Península Ibérica. Ficaram os filhos do Al-Andaluz, nesta cultura particular das gentes do Sul da Espanha.
Mas não me fiquei por ali e a terceira e última paragem antes de chegar a casa, à outra casa, que não é mais a primeira, foi em Sines, no Festival de Músicas do Mundo. A recepção carinhosa de um bom grupo de bons sócios fez com que estes dias deixassem muitas saudades e a boa programação de Sines reafirma o seu valor e a necessidade de voltar em cada ano. Um dos momentos altos do festival foi quando um grupo de fusão entre músicos gnawa de Marrocos e músicos de jazz belgas Hassan El Gadiri & Trance Mission. Os músicos gnawa foram anunciados como sendo de Marraquexe, o que me chamou a atenção. O concerto foi vibrante, não ficando atrás dos grandes nomes que se seguiram na programação dos restantes dias Rokia Traoré, Ali Khan & Party, Rachid Taha, Shibusa Shirazu Orchestra, Tamikrest ou Femi Kuti & The Positive Force.
No final do concerto, encontrei-me com os músicos marroquinos na porta do Castelo. O cenário fez deste encontro improvável algo ainda mais surreal. Como dizia Vinícus “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.” Assim, apercebemo-nos de que éramos vizinhos. Vivemos a poucos metros de distância, no mesmo bairro de Kasbah em Marraquexe. Trocámos sorrisos e trocámos cartões.
Depois de ir a casa, a essa outra casa, que não é mais a primeira, regressei à tão esperada Marraquexe. Sabe sempre tão bem este regresso, como se uma energia me puxasse a esta densa terra ocre. Seguiu-se a visita de amigos, e depois a família pela primeira vez nestas paragens. Visitas de médico, mas feitas de momentos fortes.
Dado o pouco tempo disponível dos meus visitantes decidi-me a mostrar-lhe o que para mim me parece o lado especial desta experiência, o lado humano. Não que as qualidades artísticas e formais da cidade não sejam importantes, mas essas são acessíveis a qualquer momento e através de diversos médias. O resultado foi fantástico, a curiosidade pelo outro, por ambos os “outros” provocou trocas muito interessantes.
Levei a minha sobrinha a ver a Praça de Jemaa el Fna de noite, esse espectáculo fascinante, que julgo que não mais vai esquecer. Quando lá chegámos fui-lhe mostrar o que por lá se passava, tudo aquilo que pode despertar a imaginação ambiciosa de uma criança. Fomos ver os contadores de histórias, os cartomantes, os jogos, os músicos. Qual foi o meu espanto quando me apercebo de que um dos grupos que tocava num pequeno círculo, sem grande destaque era precisamente o de Hassan El Gadiri. Fui cumprimentá-lo. Não sei se ele se recordou precisamente de mim, mas disse-lhe que nos tínhamos visto em Portugal. Aquele que em Sines teve uma multidão a vibrar a seus pés, tocava agora discretamente, de modo anónimo e modesto na Praça de Jemaa el Fna, com um público reduzido, sem que qualquer turista estrangeiro se aproximasse.
Mas o momento que mais gostei, por entre este vai e vem de gentes de lá para cá e de cá para lá, foi quando à falta de tempo para grandes viagens decidi resumir Marraquexe num dia para os meus pais. Chamei a minha vizinha Fátima e os seus filhos cá a casa. A Fátima preparou um delicioso cuscuz, ainda mais delicioso pelo carinho com que o fez! Comemos todo do mesmo prato como se faz tradicionalmente e cada um foi interagindo na língua que melhor lhe parecia. Entre árabe, francês e português, fomos comendo e falando. No final do almoço, a Khadija filha da Fátima fez pinturas em henna à minha sobrinha Maria que permaneceu compenetrada e obediente perante a circunstância. A Maria brincou com o Mostapha, a Karima mostrou as músicas que lhe agradavam através do youtube e a minha mãe foi ensinando à Fátima, numa lição de algumas horas como bordar. A Zoubida veio visitar-nos para o chá. Ao mesmo tempo, o meu pai ia tomando o seu vinho, a Rita, minha vizinha e amiga portuguesa, preparava a sua viagem para a Suécia. De cá para lá, de lá para cá, tudo circulou sem qualquer atrito.
Um dia chegou para perceber quem é esta gente aparentemente tão diferente, mas que nos toca afinal como iguais quando nos aproximamos. Turismo doméstico. Deveria ser adoptado este conceito para aqueles que procuram perceber o que vai na cabeça dos outros.
Voltei para Portugal com os meus pais e fui até Vila Real, ao congresso nacional da Associação Portuguesa de Antropologia. Estavam por lá outras caras familiares, outros que se interessam pelo lado de cá e que o transpõem para além fronteiras. Afinal, há outros que fazem também este exercício, como é claro!
Agora de regresso a Marraquexe, não volto tão cedo aos trânsitos físicos para o lado de lá. Faço-os mentalmente. Fazemos todos as nossas viagens mentais, a busca eterna de horizontes conhecidos e desconhecidos.