Kasbah tem sido uma nova experiência desde que cheguei a Marraquexe. Se é certo que entre o Norte e o Sul da medina de Marraquexe existe uma assimetria profunda que se espelha na arquitectura, no comércio, nos usos dos lugares, na condição social, no fluxo de visitantes estrangeiros, etc., entre bairros próximos como Berrima e Kasbah não pensaria encontrar diferenças significativas. A primeira impressão que tive foi uma imensa surpresa de como uma distância de escassas centenas de metros pode mudar tão radicalmente a experiência das nossas práticas espaciais. A densidade de gente na rua sobe em fecha, a exuberância dos produtos expostos também. O estrangeiro em Kasbah é um passageiro que fará uma viagem de algumas horas, talvez alguns dias, talvez alguns anos, mas não é o novo habitante, como em Berrima.
Berrima deixou-me saudades dessa certa claustrofobia afectiva, em que sair de casa não era nunca um acto anónimo. Em Kasbah, uma maior liberdade de circulação reflecte o lado um pouco mais impessoal do bairro, mas também, de certa forma, uma imagem mais real de Marraquexe naquilo que é o seu hibridismo. As culturas misturam-se em Kasbah, como se de um jogo se tratasse. Um jogo de cartas em que baralhamos e voltamos a dar as cartas. As cartas vão mudando de posição, sobrepõem-se, mostram-se, recolhem-se.
No entanto, os pontos de contacto, os lugares de conforto, vão emergindo com a vivência do bairro. A figura do guarda do parque de estacionamento é sempre aquela algo paternalista e mostra a generosidade sempre mais manifesta nas gentes mais simples.
Os meus primeiros amigos de Kasbah têm entre três e doze anos. A excitação era tanta nos primeiros tempos que cada chegada a casa era recheada por uma chuva de beijos e abraços em miniatura. A campainha tocava a cada meia hora na esperança de poder comer com os olhos essa grande novidade que era uma portuguesa na Derb Bzou. Trocávamos pulseiras, trocávamos palavras, gestos e danças. Agora os meus amigos estão mais calmos, já se habituaram à novidade, mas ainda disputam o lugar de expeditos ajudantes com os sacos de compras. O assédio daqueles que usam a abordagem do turista desconhecedor é compensado pelos pequenos grandes gestos da vida de bairro.
As cores dominam as fachadas do bairro, ao passar a Bab Agnaou provavelmente a porta mais bonita da medina, temos quase a sensação de entrar numa ramificação da praça de Jemma el Fna. Do outro lado da porta impõe-se o minarete do Panteão da Dinastia Sádida, esse fabuloso palácio do século XVI. Na artéria principal multiplicam-se os restaurantes de espetadas marroquinas que esfumaçam toda a rua, mistificando ainda mais o ambiente que é povoado por pregões, músicas, línguas de várias origens geográficas, cores de pele e de cabelos.
As frutas amontoam-se nas vitrinas e no pequeno souk a que os habitantes chamam de Souika pela sua modesta dimensão. O seu tamanho reduzido encerra porém uma diversidade incrível de produtos: as carnes, as azeitonas, os pickles e os limões, as frutas, as tâmaras, o pão, os petiscos, os ervanários, os véus, as roupas, as especiarias, os coentros e a salsa... O mundo dos marrakechis encontra-se com o mundo dos visitantes numa explosão vibratória. É uma onda de choque que nasce na praça de Jemma el Fna e que vai contagiando os tentáculos da medina, saindo por cada porta e levada aos quatro cantos do mundo.
A Cláudia, a minha vizinha grega de Berrima, que chegou a Marrocos à quarenta anos atrás nos tempos de Hassan II liga-me com frequência. Sabe bem perceber que da nossa passagem algumas coisas ficam marcadas na memória e nas vidas dos que nos rodeiam. Agora é a vez do Kasbah e da miudagem lá do bairro.
A classe média marroquina está a deixar as medinas. Ficam as famílias com menos posses ou a exploração turística. A inversão deste fluxo deve ser posta em marcha de forma a não perder a experiência cultural que aqui se vive, um modo de habitar tão especial. A mesquita, o hammam, o forno de pão, a moqata (uma espécie de junta de freguesia), o hanout (mini-mercado), o souk, são os elementos principais que estruturam cada bairro da medina. Por entre o caos aparente há uma ordem que desenha o espaço. Cada derb (rua ou ruela) é um micro-eco-sistema, tem uma ordem, um modo de ser e de fazer. Nenhuma outra cidade que eu conheça tem uma personalidade urbana tão forte como a que reconheço a cada dia em Marraquexe.