MÚSICA

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Fotografias: Hugo Lima

Os festivais deixam-me ansiosa. Primeiro porque eu sou uma pessoa ansiosa por natureza e segundo porque quando as bandas começam a tocar parece que toca a campainha da escola, é tempo de ir para a aula. Só que temos mais que uma aula para assistir e, das duas uma: ou prestamos atenção do início ao fim ou, em alternativa, deixamos uma aula a meio para ir assistir a outra. Com isto não quero dizer que os horários do Optimus Primavera Sound estavam mal delineados, mas sejamos honestos- para um neurótico indeciso esta situação está próxima de ser ansiogénica.

Também não gosto de festivais. A primeira vez que fui a um, lá atrás em 1997 jurei para nunca mais. Certo é que voltei a ir a festivais e, de longe, este foi o melhor até à data. O parque da cidade é um local "friendly", agradável e com um potencial enorme para eventos deste género. O fim de tarde nos três anfiteatros naturais do festival proporcionava bons momentos, os finos eram frescos e as toalhas laranja aos quadrados tornavam o cenário num picnic em larga escala. Digamos que ali, no Primavera Sound, foi-me possível ver concertos de grande qualidade, sentada ou em pé, junto ou não do palco. E se pensarmos bem não é todos os dias que vemos as Breeders, os Dinosaur Jr ou os My Bloody Valentine no conforto que não é do lar mas quase.

Cheguei ao Porto um dia antes do festival. Chovia tanto que, na minha cabeça, antecipei um festival cheio de lama e desilusão meteoreológica, mas não. O sol brilhou nos três dias e a primeira banda iluminada por este sol foram os Guadalupe Plata. Este trio espanhol apresentou um som Mississipi Blues Rock energético, maioritariamente instrumental. Apesar de não ter sido um mau concerto, consigo imaginá-los numa performance melhor numa sala mais "cosy".

Seguiram-se os Wild Nothing e o festival muda de direcção. Torna-se mais pop. Eu até diria twee. Este grupo norte americano andou concerteza a ouvir o C-86 e muita pop britânica de meados de 80 (como os The Pastels). Pop etéreo, sem grande melancolia, teclado imensamente presente à la The Cure tornou o fim de tarde bastante agradável.

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Wild Nothing

Os concertos iam decorrendo pontualmente e chega a altura de ouvir as Breeders. Senti-me na reunião da banda do liceu, 20 anos mais tarde. Os anos passam a voar por todos e isso fez-se sentir em palco mas também no público. Se querem isenção em relação ao concerto das Breeders desenganem-se. Não foi um bom concerto mas eu pessoalmente gostei bastante. Isto porque me vi novamente no meu quarto de adolescente a ouvir o álbum em cassete. À minha volta também só vi adolescentes que se abanavam ao ritmo da música mas, honestamente, não creio que percebessem de que concerto se tratava. O arranque com o New Year não foi nada de especial, mas também não foi desastroso. Viram-se as manas Deal em esforço físico, excepto Josephine Wiggs que agarrou bem a secção rítmica mas fez o baterista suar. O crepúsculo ao som de Do You Love me now e a noite com saints e com todos os santos a ajudarem à festa. No Driving on 9, apesar de ser um tema "catchy", já se sentia uma banda a derrapar (a música deveria chamar-se driving on ice).

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Breeders

As Breeders não são uma banda lírica, mas houve lirismo no ar e ao contrário delas, o concerto de Nick Cave and the Bad Seeds foi pouco entusiasmante. O público de Nick Cave e seus companheiros adere sempre, mas esta banda já não é só uma banda, é uma seita. E para liderar esta seita temos Nick Cave, sempre muito bem na sua posição de "preacher man". Houve qualquer coisa que falhou a meu ver. Vimos Cave e Ellis muito provavelmente embriagados, o que não tem mal nenhum, mas com uma banda daquelas não há razão para falhar o que quer que seja. Muito tempo entre músicas, arranques fracos, músicas com uma clivagem desnecessária (Red Right Hand). Foi uma banda de tudo ou nada, mas o tudo ou nada de Nick Cave and the Bad Seeds só me faz sentido quando a banda também olha para aquilo que está no centro. Faltou-lhes paciência.
O segundo dia, se não me falha a memória, começa com Memória de Peixe. Este duo aposta no instrumental para se definir enquanto banda, e fazem eles muito bem. Músicas bem construídas, ricas do ponto de vista técnico e criativo e com uns pozinhos loopianos de Durutti Column.

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Nick Cave

Os OM foram uma agradável surpresa. o trio californiano vai buscar tantas influências que só podem ser muito inteligentes para resultar como resultou. Desde o metal ao stoner e sonoridades da Índia, esta banda faz um excelente uso dos recursos rítmicos. Tarola aguda e baixo grooviano para demarcar bem os limites daquilo que poderia muito bem ser uma jam session. A banda nunca perde o controlo, aguarda o momento certo para se debater com as partes mais explosivas dos temas.

No mesmo palco e sem mover um milímetro da já acima referida toalha aos quadrados laranja, aguardei pacientemente pelo "estudo de caso" Daniel Johnston. Quando digo estudo de caso não me refiro a perturbações do foro psiquiátrico, mas sim à forma como este "friendly ghost do Lo-Fi" conseguiu ao longo de tantos anos construir um legado assente em tantas descompensações. Diria até que joga na mesma equipa de Syd Barret (Pink Floyd) e Roky Erickson (The 13th Floor Elevators).
Johnston apresenta-se em palco com uma toalha branca ao pescoço talvez prevendo que fosse suar. Também tinha à sua frente as letras das músicas talvez prevendo que se fosse esquecer. A banda suporte de estilo Ramoniano (para manter as coisas simples) lá o ia segurando estoicamente fazendo os devidos ajustes de tempo.O senhor aqueceu, pareceu-me esforçado mas natural. O público em contrapartida estava mais contemplativo do que interactivo. O fim, esse sim animador para os mais pessimistas só poderia ter sido "True love will find you in the end". Palavras sábias de Daniel Johnston...

Swans começam com uma espécie de interlúdio de um filme. Michael Gira, o maestro e cowboy desta banda com pouco mais de trinta anos, continua a saber contar muito bem a história da música do século XX a pessoas que já vivem no século XXI. Nunca tinha visto os Swans ao vivo apesar de já ter visto Gira a solo três vezes. É totalmente diferente, claro está. No contexto banda a arrogância de Michael Gira passa mais despercebida. O carácter tribal dos temas, o experimentalismo e aquele baixo tão baixo que se torna alto torna a experiência metafísica mas nervosa. Não é possível ignorar os Swans porque estes utilizam a psicologia invertida com classe e brilhantismo. Mesmo quando a banda se torna incómoda, o magnetismo é tal que os olhos do público vão sempre lá parar. Foi um concerto excelente.

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Grizzly Bear

Antes de ir ver os Shellac, fui dar uma espreitadela aos Grizzly Bear. Só conheço o álbum Veckatimest e nunca acompanhei a banda de perto. Falha minha. Os Grizzly Bear fazem-me lembrar aqueles astronautas que passam anos a ser treinados para embarcarem numa nave espacial mas nunca chegam a ser os escolhidos para sair da órbita terrestre. Têm a escola toda do "espaço" mas continuam de pés firmes no planeta que os viu nascer.

Mudando totalmente de registo, estilo de público, palco e sonoridade, dirigi-me ao local onde já actuavam os Shellac. Steve Albibi e os seus companheiros de banda posicionam-se em palco como se quisessem ser o público. Aliás, o público faz parte dos Shellac. É como se fosse uma grande festa em que todos os presentes são intervenientes principais. As letras corrosivas, a interacção com o público e a "amelodia" distorcida desmascaram uma banda da escola punk/hardcore/pós-hardcore de Chicago, com estofo mais que suficiente para tocar num clube manhoso ou no palco cheio de dignidade. Não nos esqueçamos que Albini para além de ter formado os Big Black no início da década de 80 produziu bandas como os Nirvana ou as Breeders.

A hora tardia e o cansaço não me demoveram e fui andando para o palco que iria acolher os Blur. Muita gente a chegar com um ritmo mais frenético que o habitual. Uns segundos antes do concerto começar, olhei para o céu, e vi tantas estrelas que antevi um óptimo fim de noite. Fui interrompida com o Girls and Boys e o público entrou logo em êxtase sem que houvesse qualquer ponte entre estados de alma. Não achei muita piada mas percebo a jogada. É claro que, sendo os Blur uma banda com muitos hits no currículo, nenhum concerto pode passar ao lado disso. Destaco três músicas que resultaram na perfeição: Beetlebum com o seu início encantador e aquela guitarra de Graham Coxon a elevar ainda mais uma canção que já é boa por si só, Coffee and TV e principalmente a Out of Time que ligou o público à banda de uma forma mais aconchegante. A meio da Song 2 (que também só dura mais ou menos dois minutos), decidi rumar ao descanso merecido até porque já passava das 2 da manhã.

Depois de dois dias de corropio entre concertos, junk food e barracas de cerveja, ofereci-me um último dia de festival mais refinado. O meu cansaço já se fazia notar, mas a minha vontade de ouvir os Dinossaur Jr. felizmente prevaleceu.

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Dinossaur Jr.

Os dinossauros já não são júnior. Os Dinossauros são séniores, mas não fossilizaram. Antes de entrarem em palco reparei na panfernália de amplificadores e colunas Marshall que iriam atestar aquele cenário de decibéis. Mas decibéis dóceis. Vi-me sentada na relva, já sem a minha companhia, a toalha aos quadrados laranja (que estupidamente me esqueci em "casa") a ouvir o Feel the Pain com o sol a anunciar a despedida. À primeira vista parece ser um som datado, mas se assim fosse o Neil Young também o seria, e não é. Os Dinosaur Jr. são indie mas bebem muito do rock clássico das décadas de 60 e 70. E é este cruzamento de influências que os torna uma banda com espinha dorsal. Apesar de estar mais recuada no recinto, imaginei muitos trintões e quarentões a bater o pé, talvez depois de J. Mascis ter dito bem alto "please wake up". Talvez tenham acordado na cover dos Cure Show me. Quem estava a dormir não sabe o que perdeu.

A cidade de Chicago aterra novamente no Porto mas desta vez com os Sea and the Cake. O que caracteriza esta banda é a envolvência, os detalhes da voz e dos coros e uma guitarra que parece tímida mas quer fazer amigos por entre um público embevecido e atento. Este quarteto, querido da editora Thrill Jockey (a par com os Tortoise, banda do baterista de Sea and the Cake) deu um dos melhores concertos do festival.

No mesmo palco actuou White Fence e aí, encetei a "good trip" da noite. "West Coast, Best Coast", e os californianos mostraram que a costa Oeste dos Estados unidos respira saúde. White Fence é o projecto a solo de Timothy Presley (também Stange Boys e Darker my Love) que às vezes me faz lembrar um Bob Dylan na fase eléctrica. Controverso como Dylan? Não! Deixa logo bem claro que que o neo-psicadelismo veio para ficar fazendo-se acompanhar com uma banda mais que à altura.

O concerto dos My Bloody Valentine não tardaria muito a começar, mas arrisquei a fui até à urbanicidade do palco Pitchfork espreitar as Savages, miúdas que me despertaram o interesse na Mojo há uns meses, mas que me desmotivaram num par de audições no youtube. As londrinas são claramente influenciadas por Siouxie and the Banshees. E mais: se a Susy ainda estivesse na sua fase áurea e se os Certain Ratio ainda ditassem batida, juntar-se-iam para formar as Savages. Soa a redutor, mas foi assim que ouvi um concerto bem dotado e despido de falsos testemunhos.

"Every Season has an end" já dizia Holly Golightly e, o fim da Primavera e do Optimus Primavera Sound deu-se ao som dos tão bons My Bloody Valentine. Pessoalmente, se a banda tocasse apenas o You made me realise eu já ficava feliz. Mas eles proporcionaram-me um concerto solitário que só me fez pronunciar palavra vinte e tal minutos depois. Bom sinal! Perdoem-me o desabafo de uma festivaleira trintona e cansada. Já não me lembro que músicas tocaram, só me lembro de ter acontecido à minha frente e de pensar que tristeza não é nada mais que isso.

Close my eyes/Feel me now/I don't know how you could not love me now/You will know, with her feet down to the ground/Over there, and I want true love to grow/You can't hide, oh no, from the way I feel.

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