A Roupa no Chão do Quarto Adivinhava uma Tempestade
O Verão desse ano foi lento, tal como as gotas de suor que se vão acumulando depois de uma tarde a explorar um corpo que não é o teu. Horas infinitas a juntar os corpos como duas vozes num refrão imortal, jantares às escuras porque acender a luz significava uns segundos de distância da Telma.
Os cinzeiros eram despejados como num ritual e a loiça lavada a quatro mãos, com mordidelas pelo meio. A roupa amontoava-se no chão do quarto e era esquecida propositadamente, tal como a escova de dentes que ficou uns meses na minha casa de banho depois da despedida, cinco anos depois.
No fim desse Agosto conhecia-lhe o arredondar das frases, todas as curvas e entrelinhas daquele corpo. O Love Supreme tocava sem parar no gira-discos e quando finalmente o virava para o lado B aquele solo de bateria significava o início de mais uma sôfrega exploração da carne.
Setembro começou e acabou e ao entrar em Novembro já morávamos na mesma casa. O trabalho recomeça e a rotina afasta os corpos, mas o desejo parece nunca acalmar.
O Inverno chega e apesar do frio passeávamos pela Lisboa deserta à procura de um Gin que nos aquecesse a conversa. Divertíamo-nos a escapar à chuva, ensaiando desajeitadas rendições do Singing in the Rain, um filme que nem chegámos a ver juntos. Quando o temporal não nos deixava sair de casa ficávamos rendidos a ver velhos Noir. A cassete do Pickup on the South Street do Sam Fuller chegou mesmo a ficar engatada dentro do leitor, e após esvaziarmos outra garrafa de Gin conseguimos pô-lo a funcionar. A fita da cassete serviu para amarrar a Telma gentilmente e tentar que nunca fugisse de mim.
Um ano passou a correr mas não o comemorámos no Algarve. Jantares com amigos tornaram-se tão regulares como as audições do Kind of Blue do Miles, e conhecer os amigos da Telma foi conhecê-la ainda melhor. Após a separação nunca mais ví nenhum deles, excepto o Carlos, que foi sempre um narrador ausente da nossa relação.
No segundo ano os feitios começam a provocar calafrios. Desde aquele primeiro momento no Algarve que o sentimos, a minha apaixonada negatividade e a disfarçada alegria da Telma que mascarava um imenso mar de apocalipse — dois corações tão próximos do inferno não podem trazer o céu.
Mas era esse choque; de tão igual que era anulava-se. Enebriados pelo calor um do outro completávamos o mapa de uma guerra nuclear eminente, cada um com as suas tropas prontas para o conflicto. Os cinco anos que passámos juntos foram uma espécie de guerra fria, mascarada pela única coisa que realmente nos manteve unidos: o desejo do corpo.
Quando as discussões acendiam fogos capazes de queimar Campo de Ourique inteiro era sempre a carne que nos salvava.
Fomos combatendo o conflito com pequenos armistícios sobre a forma de poemas, livros, discos ou simplesmente porque não conseguíamos acalmar esta sede um do outro.
Foi talvez a meio do último ano, lembro-me de ter terminado a primeira colecção de poemas e estava prestes a entregá-los ao mundo. Chego a casa e não a encontro, provavelmente atrasada no seu novo emprego. O apartamento parecia que tinha perdido a vitalidade. Alguma mobília que tínhamos escolhido e cuidadosamente colocada, alguns quadros e os discos impecavelmente arrumados. As velas estrategicamente dispostas, o frigorífico eximiamente arrumado, pormenores de uma vida composta e a caminho da perpetuidade.
Tudo isso nesse final de tarde sentia-se estranhamente vazio, como se pertencesse a um passado. Passei algum tempo de pé como num sonho, casaco ainda vestido, a tentar perceber se estava acordado.
Quando finalmente consigo sentar-me no sofá, os poemas atirados para o lado, percebi que não podia nunca escapar a este amor ácido, e que todas as palavras, todas as estrofes que até ali tinha escrito sobre esse fogo que arde sem se ver estavam errados. Eu não podia viver sem a Telma mas ela não podia existir comigo. Ela é tudo aquilo pelo qual escrevo, a origem e o fim de todo o conflicto, a resolução de todas as frases, todas as rimas e todos os pontos finais.
Aquilo que tinha escrito na plena felicidade ao longo de cinco anos estava errado. Não era eu, era falso. Com a Telma a meu lado a minha escrita não pode existir. Como escrever sobre algo que está ao nosso lado, todos os dias, em todos os momentos? O que procuro, o início e o fim das frases, está personificado naquela mulher de curvas misteriosas e sorriso contagiante.
Porque escrever é procurar algo que temos a certeza não encontrar, que nos faz arrumar as frases e procurar a melhor palavra antes daquele ponto final. É criar a ilusão, vivê-la como se lá estivesse.
Para continuar a escrever, não posso estar contigo, Telma.
Quando ela chegou finalmente a casa nessa noite, já tinha escrito o nosso livro e a última página não estava em branco.
Não houve lágrimas. Porque no fundo nunca nos separámos. Ela continua a existir na minha escrita, e só assim a posso tornar real. Enquanto a Telma for uma probabilidade neste mar de possibilidades, as palavras vão continuar a ser formadas, os livros encadernados e os poemas sem título.