Fotografias: José Paulo Ruas e Luísa Oliveira.
Num processo longo entre o pensar e o executar, Tatiana Macedo demorou quase um ano a preparar 1989, a peça vencedora do Prémio Sonae Media Art. Enquanto artista o seu trabalho é sempre um contínuo, o que fez antes influencia o que vem a seguir, e encara sempre tudo como uma longa caminhada. Tanto os conhecimentos como as práticas são constantemente aprofundados, reciclados, refinados, desconstruídos e as questões continuam a surgir.
Como foi o processo criativo de 1989?
Desde o início que a minha ideia era fazer um triptico. Não trabalho com nada muito pré-definido, muito controlado. Os meus guiões são formados por associações de ideias e relacionam o campo das imagens com o campo das ideias, de forma bastante fluída. Tem que haver lugar para a vida acontecer. Sou daquelas que deixam a câmara a filmar nos intervalos. É a minha tomada de posição no momento de filmar, reflectir a minha relação com o objecto/tema, juntamente com toda a construção e criação plástica que acontece com a montagem posterior da imagem e som. Estas associadas à forma como vai ser instalada no espaço, formam o “processo de criação”. E eu estou presente em todos os passos do processo, a decidir cada gesto. Aqui sim, controlo tudo ao pormenor. O meu trabalho está cheio de camadas e “subtilezas” conceptuais e formais.
Que investigação fizeste para a peça?
À semelhança da investigação que faço com a imagem, ou seja, vou filmando e fotografando e constituindo o meu arquivo, assim é a minha pesquisa teórica e ensaística. Leio e recolho textos e para formar um arquivo. As ideias vão se cristalizando na minha cabeça à medida que me encontro com estes materiais. São anos a investigar.
Como a descreves a nível de narrativa? Uma vez que junta o documental com a ficção, que história conta?
Se formos colocar as coisas de grosso modo, a peça pode ser vista como um olhar para Europa, a partir de fora. Sair, para conseguir ver. Definir interior e exterior, e a posição do sujeito em relação a um determinado tempo e lugar são, digamos, “as grandes linhas narrativas” que a peça aborda. A partir de onde foram escritas as grandes macro-narrativas? Quem definiu quem sou eu e quem é o outro? São questões levantadas. O pensamento de fronteira é a noção de que quando se pensa, pensa-se sempre a partir de um lugar, e esse lugar deve ser reflectido, esse é o lugar da fronteira. E as fronteiras começam na própria linguagem, no pensamento. Este tem que ser o grau zero de qualquer olhar/pensamento contemporâneo. A realidade tirou-nos o tapete. É mais fácil escapar que encarar o novo paradigma de reposicionamento do indivíduo com a História que foi e que é todos os dias escrita, com a geopolítica, com o sentir e com o saber. Estamos implicados num exercício constante de tradução.
Nela exploras o meio videográfico e fílmico, através de uma tripla projecção com som espacializado. Como exploras estes meios e de que forma relacionas na peça o individual e com o político?
Este tríptico, constituído por três capítulos, começa com o retrabalhar um debate do final da década de 60 na Cambridge University Union com o tema: “Has the American Dream been achieved at the expense of the American Negro” tendo como oradores James Baldwin e William F. Buckley Jr., a favor e contra a premissa em discussão, respectivamente. Pensando no ‘lugar’ da discussão, não deixa de ser importante para a reflexão, o facto de o debate ter ocorrido numa Universidade Inglesa. As imagens documentais do debate foram transformadas por mim por forma a dar ênfase a determinados elementos do argumento e das suas linguagens (oral e gestual), dos interlocutores e da audiência, atribuindo-lhes um novo ritmo e uma nova composição e envolvência imagética e sonora.
No segundo capítulo, assistimos à encenação de uma tradução/interpretação simultânea, dentro de uma cabine de tradução que reflecte um jardim exterior. Lara, intérprete de tradução simultânea em conferência há 10 anos, doutorada em Literatura Inglesa, lê o guião construído por mim. Nasceu em Moçambique, viveu até aos cinco anos na Rodésia e estudou até aos 17 na Suazilândia, numa escola conhecida pela sua luta anti-apartheid. Tudo é traduzido, até a tradutora. A montagem salta da cabine para um parque de Pequim e para a cidade “pós-moderna” de Hong Kong. Tudo nesta peça foi filmado por mim, à excepção do debate na Cambridge University Union. O som foi um trabalho de colaboração com Jonas Runa, foi incrível. A composição sonora em três canais é uma composição original que tem no seu processo desde uma gravação em improvisação com vários instrumentos, até ao trabalho electrónico e de espacialização de sons pré-existentes. É bastante complexo. A montagem da imagem em três canais também é muito complexa e exigente sob o ponto de vista criativo e técnico. Quero aqui agradecer, mais uma vez, a todas a pessoas que colaboraram nesta peça.
Porquê 1989?
Porque se é um olhar sobre a Europa, a partir de fora, 1989 foi o ano em que caiu a “cortina de ferro” e começou uma nova relação da Europa “com o resto” do mundo. O próprio mundo, que geopoliticamente se dividia em dois, tal como a linguagem tende a formar-se a partir de binómios, teve que se reposicionar. Foi o início de um processo que talvez ainda esteja em construção, e sobre o qual é necessário pensar. Sob um ponto de vista mais pessoal, foi uma das imagens que marcou a minha relação também com o pensar o mundo, e a relação com as imagens que são difundidas. Lembro-me de o meu pai estar agarrado à televisão, durante toda a noite, a ver a queda do muro, as pessoas que empurravam os blocos com as mãos. Foi o cair de uma fronteira em directo, com o que de mais político e poético isso tem. Hoje em dia somos bombardeados com imagens em directo, com o advento da Internet. Mas foi a partir dos anos 80 que a relação entre a representação e a acção se esbateram: as imagens em directo passaram a ser catalisadoras de acção.
Como decidiste concorrer ao prémio Sonae Media Art?
Achei que o trabalho que tenho vindo a desenvolver ao longo dos últimos anos reflecte os parâmetros em que o prémio se enquadra. Não é um prémio para jovens artistas, a selecção dos finalistas foi feita a partir da avaliação do currículo de trabalhos já realizados. Lembro-me que entreguei a candidatura no último, ou penúltimo dia.
Já sabes o que irás fazer com o valor do prémio?
A primeira coisa em que pensei foi que seria um retorno merecido pelo investimento que tenho feito ao longo de alguns anos. Agora posso finalmente tratar as contracturas que sofri com o andar com o equipamento e a casa às costas, e as horas em frente ao computador, a editar. E depois talvez siga o conselho do Miguel Esteves Cardoso, numa das crónicas do Público, e compre uns copos de cristal!