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Até 31 de Março, Presense de Rudolfo Quintas é a exposição a ver no Adamastor Studios. Durante a ultima década Rudolfo foi apresentando o seu trabalho pontualmente em Portugal, mas sobretudo no estrangeiro em galerias e festivais onde a arte digital já está mais enraizada na cultura contemporânea. O artista tem sentido que em Portugal temos muito medo do que é novo, de apresentar o que ainda não está validado, do que não dominamos. Para Rudolfo a cultura contemporânea faz-se disso mesmo: da experimentação, do risco, do falhar, de nos depararmos com o desconhecido. Assim nesta mostra podemos ver trabalhos interactivos - instalação e escultura audiovisual, aplicações móveis e videomapping que se constróem da participação e intervenção dinâmica de cada visitante.

E porquê o Adamastor Studios? É um espaço central, recente, com uma dinâmica de programação que aposta em exposições que arriscam. "Tem uma magia própria. E como as minhas peças são simples e depuradas ponto de vista formal, tudo começou com uma ideia romântica de as imaginar a habitarem este espaço", explica o artista. Falámos com Rudolfo Quintas que nos contou tudo acerca desta interactividade...

A exposição constrói-se da participação e intervenção dinâmica de cada visitante. Como é que esta dinâmica se vai processar?
A exposição reúne um conjunto de peças interactivas que exploram diferentes formas de participação, são contexto de interacção, ou contextos sensíveis, que apesar de sinestésicos, versam sobre sentidos distintos. Por isso são esculturas, instalações visuais ou soundfields. Todas têm em comum o facto de serem activadas por via da interacção, convocando a participação, o movimento, ou situações de composição e tomada de decisão. Sem a presença do corpo a peça não se realiza. O meu trabalho é o que resulta da relação entre o corpo e objecto, o que resulta de um sistema de relações. A percepção do visitante modela a peça, e utiliza as sensações como instrumento. Assim, resumindo, posso dizer que a dinâmica das minhas peças se processa na medida em que estas são sistemas interactivos que transportam as sensações para uma construção plástica/composição em permanente feedback com a percepção.

Na exposição reúnem-se trabalhos interactivos - instalação e escultura audiovisual, aplicações móveis e videomapping. Fala-me sobre este teu processo de trabalho, qual é a composição imagética destes suportes e de que forma interagem com o visitante?
Tenho dificuldade em definir o meu processo de trabalho, pois é muito instintivo. Já iniciei peças após mais de seis meses de pesquisa e estudos que foram um fracasso, porque quando as comecei a implementar não faziam sentido. E outras que vieram a ser internacionalmente premiadas porque acendi um isqueiro para testar um sistema interactivo e o erro gerado despertou-me uma ideia que se veio a concretizar. É o caso da performance chamada Burning The Sound. Posso dizer que existe uma relação íntima entre a ideia e o media por via da qual se concretiza, ou que cada suporte responde à necessidade de cada ideia. Por exemplo o BSide é uma aplicação para dispositivos móveis, actualmente instalada num iPAD, detectando o rosto desconstrói o contexto envolvente. Esta peça começou em Faro, estava hospedado há três dias num bonito hostel e informaram-me que iria haver uma festa depois de jantar com uma série de pessoas com trissomia 21. Quando voltei no fim do dia, deparei-me com a festa e a alegria daquelas pessoas que estavam a cantar, dançar e conviver. Decidi contribuir para a festa e comecei a tirar umas fotos com eles abrindo o iPhoto do computador. Eles viam-se na câmara do computador como um espelho, e tirei uma foto com um que esboçou um grande sorriso, mas que lhe faltavam uma série de dentes. Eu tinha acabado de tirar o aparelho e o contraste era enorme, embora a alegria dos sorrisos fosse semelhante. Fui para o quarto, prototipei e escrevi um código em Processing, e passado uma hora voltei para fazer as fotos juntamente com eles, na qual a distorção aplicada à minha face era igual à deles, mas a foto mantinha o resultado expressivo da face. A superfície das fotos conseguia transmitir a essência que era a alegria do momento, retirando a superfície causada pela diferença. Passado alguns meses voltei a este trabalho que é agora a aplicação BSide.

Em Absorption, uma das outras peças que está na exposição, começou quando o Tom Kirchhausen um cientista da Universidade de Harvard me encontrou na Mouraria. Eu estava sentado no chão a projectar uma imagem na fachada traseira de uma pequena Igreja, uma peça chamada A Verdade Esconde-se Nas Traseiras. Começámos a falar, mostrei-lhe um trabalho de dança que tinha desenvolvido com partículas e ele disse-me que trabalhava com moléculas e interacção inter-celular. Passado umas semanas convidou-me para fazer uma residência artística em Boston na Harvard Medical School para estudar e compreender o processo de interacção inter-celular, em particular da endocitose mediada por uma molécula que se chama 'Clathrin'. Levei comigo uma instalação sonora e discuti horas a fio com os cientistas do laboratório a arte e a ciência, o que tem de comum e o que nos distingue. Foi interessante perceber que eu utilizava processos muito semelhantes para analisar o corpo e movimento, e retirar dados que depois traduzo para som ou imagem, e eles fazem o mesmo a uma escala micro-celular, para retirar dados que usam para qualificar informação das celulas. Depois surgiu a comissão para desenvolver um trabalho e um processo que demorou vários meses, desde a ideia inicial, até à necessidade de desenvolver uma tecnologia de projecção nova para por em prática a ideia que se veio a formalizar.

Rudolfoquintas

Desde o final da década de 90 que crias projectos multidisiplinares no âmbito das artes digitais. Como surgiu o teu interesse por esta área e qual tem sido o teu percurso?
Surgiu como um percurso natural que veio ao encontro da minha curiosidade e questionamento pelo fenómeno da vida e pela necessidade de criação e expressão plástica. Do ponto de vista artístico iniciei a minha expressão com ferramentas que me eram mais familiares, desenvolvendo trabalhos em desenho a performance. Fiz a minha primeira exposição de desenhos aos sete anos e fazia espectáculos de dança na escola 🙂 Às vezes penso que poderia ter sido bailarino, talvez daí a minha relação forte como o corpo e o movimento nas minhas peças, não sei, ou pelo facto de ter feito artes marciais durante muitos anos. Mais tarde fiz o ensino secundário numa escola de ensino artístico especializado – a Soares dos Reis no Porto, que me deu a formação plástica e teórica mais consolidada. É com muita indignação que vejo hoje a tentativa de eliminação destas escolas. Muito provavelmente não teria desenvolvido o meu percurso da mesma forma sem ter passado pela Soares dos Reis, pois quando cheguei à faculdade já tinha passado pelos meus cubismos, surrealismos, expressionismos abstractos e ready made. Embora não tivesse o domínio conceptual que o tempo da faculdade me possibilitou, através de aulas com professores de filosofia, estética e teoria de arte como David Santos ou o Miguel Von Hafe Pérez, tinha o instinto plástico da procura e uma certa obsessão por me tentar encontrar e fazer espelhar o meu tempo, que estava a ser construído por um lado pela experimentação através de novas ferramentas e o que isso traduzia e possibilitava do ponto de vista plástico. Por outro lado um tempo em que estávamos a fazer a transição entre o mundo analógico e o digital e todas as questões que isso levantava na vida a nível social, económico e humano: as questões da 'aldeia global', da imaterialidade e do virtual vs real. Estávamos na viragem do século onde se especulava sobre o impacto da revolução digital a todos os níveis.

A expressão digital surgiu quando estava a fazer uma instalação chamada Esquizofrenia e Capitalismo e queria que o corpo de uma mulher se transformasse no de um homem, à medida que nos aproximássemos da projecção. Neste trabalho os gráficos eram pré-feitos, modelos animados em 3D. Ao mesmo tempo, em inícios de 2000 iniciei um percurso na cultura então underground do Vj, no qual comecei a fazer software para criar gráficos em tempo real com o som, na tentativa de criar uma linguagem sinestésica, e a passagem destas técnicas que utilizava no VJing para os trabalhos plásticos surgiu naturalmente, quando pensei o que seria se os gráficos fossem criados através dos gestos e movimentos das pessoas. O primeiro trabalho plástico que realizei com esta ideologia generativa foi uma instalação chamada New Media As Cyborg em 2001 com meu colega Tiago Dionísio. Nesta altura a influência de leituras como as do Manifesto Cyborg de Donna Haraway potenciaram o meu imaginário para a construção de um ambiente audiovisual gerado e modelado pelos gestos das pessoas, como uma extensão dos sentidos onde o corpo perdia a sua materialidade e género. Depois fiz uma pós graduação em engenharia de computação gráfica em ambientes virtuais na Universidade do Minho, e segui o meu percurso com um mestrado em Artes Digitais. Agora estou a meio de um doutoramento em Média Arte Digital na Universidade Aberta com a Universidade do Algarve.

Tens estado em residência no Adamastor Studio. Fala-me um pouco do dia a dia e de como tem corrido?
Fiz diversos períodos de residência espaçados no tempo, desde passar alguns dias a percorrer as salas, a ficar cá três dias consecutivos. A montagem foi um desafio gigante. O Absorption por exemplo é uma escultura que pesa mais de 400 Kg e está suspensa numa parede de estuque e madeira. Foi necessário um trabalho de engenharia para a suspender, testes de materiais e resistências.

Exploras a relação entre corpo, sensação e presença, entre o espaço físico e o digital. De que forma é que se vão cruzar?
Para mim a presença física é importante como manifesto do corpo que habita um lugar e potencia o seu lado humano. Não acredito num mundo onde a presença física se desvanece. A presença física transporta uma série de mensagens implícitas que são o que temos de mais belo enquanto seres, seja esta a cadência do olhar, dos movimentos, dos gestos e da forma como a nossa percepção se manifesta no corpo. As peças exteriorizam isso. São compostas no espaço físico pelos visitantes onde a espontaneidade flui com um tempo próprio e depois desdobram-se em suportes digitais, seja pelo registos dos retratos visuais como em BSide ou em faixas sonoras como em Présence. As sensações são instrumentos através dos quais os visitantes desenvolvem uma consciência perceptiva das peças e da sua intervenção.

Que reacções esperas desta mostra?
Espero que contribua para abrir o horizonte de expectativas do público, que todos os que vierem a fazer parte destes contextos sensíveis, e vieram construir a exposição - seja pela visita, seja pela participação no programa pedagógico, experimentem aquilo que cada peça se propõem proporcionar, com prazer e gosto. Espero também que aconteça uma actualização do contexto artístico e crítico português face às questões que as práticas artísticas em media digitais colocam. Outra reacção desejada será a utilização deste projecto e das possibilidades que abriu, enquanto projecto interdisciplinar que é (envolveu um processo de criação e discussão com filósofos, neurocientistas, biólogos, historiadores de arte, engenheiros, músicos) como catalisador para a exploração das linhas de convergência, do encontro e de variação e inovação que concretizou.

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