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Em Ribbons, uma instalação vídeo multicanal do artista britânico Ed Atkins (n. 1982, Oxford, Reino Unido), a animação digital toma o lugar do mundo real, remetendo-nos para um universo plástico e artificial regido pelas leis da alta definição e das superfícies polidas. O Homem enquanto máquina feita de carne – eis uma imagem do mundo contemporâneo.

Atkins, um dos artistas que melhor tem trabalhado a intersecção entre a tecnologia e os limites da expressão humana, contrasta a dimensão material e efémera do mundo natural com as suas representações mediáticas e fantasmagóricas, que circulam pelos ecrãs dos nossos computadores, telemóveis, janelas.

Ao olhar para o mundo a partir do seu duplo digital, Atkins abre caminho para uma reflexão sobre a suposta imaterialidade das imagens. Dave, o protagonista de Ribbons, é um personagem profundamente afectado, como se atravessado por uma espécie de sopro que o tornasse sensível aos sentimentos e humores humanos. Um dos aspectos fundamentais de uma obra como Ribbons é justamente a forma como a figuração da subjectividade humana nos é apresentada. Atkins não cria, por assim dizer, um boneco ao qual atribui ou adiciona propriedades antropomórficas, que nos convide a projetar ou a reconhecer a nossa própria condição no seu corpo. Não se trata de um CGI fotorealista que tenha por objetivo enganar o espetador, fazendo-se passar por uma representação de um corpo que nos é familiar, mas antes a presença de um CGI com alguma autonomia – um acrescento ao mundo. Dave depara-se com estados de espírito frequentemente instáveis, como se isso fosse uma expressão de um fluxo inconstante de consciência, como se sua melancolia ou solidão fossem expressivas da sua subjetividade – como se justificassem a sua existência.

Uma das estratégias recorrentes de Atkins passa pela utilização do CGI enquanto material plástico, utilizando a linguagem específica quer da animação de computador, quer do próprio cinema. O efeito é desconcertante porque na sua origem se encontra um paradoxo – em Ribbons abundam as alusões a fluídos corporais, a traços da presença de um corpo e de um pensamento que não podem existir para lá daquele aparato mediático. Os três ecrãs que compõem a instalação, justamente pelo modo como normalmente se encontram dispersos ao longo dos espaços dispositivos, prefiguram desde logo uma desmultiplicação de uma identidade já de si fragmentária, incapaz de se posicionar perante o mundo assumindo uma herança humanista, que faça de uma subjectividade fixa o centro do seu universo.

Muito pelo contrário, é o mundo físico e natural que "assombra" Dave, que permeia e atravessa a sua imaterialidade. Atkins colhe no cinema um conjunto de estratégias que assinalam a construção de uma situação em função de um determinado espaço, estratégias essas que vão desde a utilização de lens-flares, aos tracking shots, ou à focagem arbitrária entre objectos dentro de um mesmo plano. A dado momento, um tracking shot atravessa uma mesa com copos meio vazios, deslocando-se num movimento contínuo até dar com Dave a fumar um cigarro. À sua frente um pequeno vaso com uma flor. O tracking shot e os efeitos de luz remetem sempre para uma lógica cinematográfica que invoca uma correspondência material que naquele contexto não parece fazer sentido. Quando Atkins foca a planta em primeiro plano, deixando Dave desfocado e entregue a um dos seus monólogos melancólicos, aquilo que está em causa é também uma representação de um espaço de possibilidade virtual que não se consegue libertar do seu referente, quer dizer, não consegue prescindir do espaço onde os humanos vivem, bebem e fumam, actividades que parecem aqui invocar alguma essência material, fisiológica, existencial. É já a construção de um mundo fantasma, tão livre do corpo quanto dependente da matéria.

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Aspecto fulcral na prática artista de Atkins é justamente a tecnologia de captura de movimento (motion capture), que lhe serve de ponto de partida. A figura de Dave é aliás um avatar genérico, uma espécie de template que pode ser adquirido como quem compra uma imagem de stock. Mas é quando o movimento e performance de Atkins lhe são justapostos, quando a voz do próprio artista dá substância ao fluxo de consciência de Dave, que a poderosa imagem de uma contemporaneidade alienada de si mesma começa a emergir. Vivemos numa "sociedade digital" onde a materialidade do papel não se evaporou, antes deu lugar a gigantescos armazéns onde um sem número de servidores guarda uma absurda quantidade de informação. O fantasma de Dave/Atkins é também o nosso.

Por mais disruptiva ou utópica que possa ser a internet e a cultura da partilha em rede, parece haver hoje uma enorme pressão para uma presença 24/7, always on, de continua produtividade e eficiência total. O trabalho de Atkins habita essa aceleração digital para a desestabilizar, assombrando a alta definição do digital com "porosidades" e detritos inúteis do mundo físico. A performance do avatar da rede social, a identidade virtual e hyperreal da nossa presença online tem sido progressivamente parasitada pela lógica de um mundo corporativo que ameaça todas as dimensões do possível, e é essa condição tão instável quanto inoperativa que Dave vem figurar.

Uma das imagens mais expressivas dessa exaustão especificamente contemporânea é justamente a de Dave debruçado sobre uma mesa, com o corpo deformado e vazio a sinalizar o esgotamento de um estado mental, outrora garante de uma essência e individualidade humana.

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