Fotografias: vários autores.
A emissão de música de uma qualquer esplanada, o rádio do motorista da Rede Expresso ou a coluna num elevador de escritórios torna o que poderia ser uma experiência agradável, num doloroso calvário diário. Desprezamos o silêncio e produzimos ruído com a mesma celeridade com que o Bolt corre os 100 metros. O Lisboa Soa não só serviu de pretexto para conversarmos com a sua organizadora, Raquel Castro, como sobretudo para percecionar o som como matéria-prima de valor incalculável. Quando o mesmo é trabalhado de forma original, abrangente e baseado em estratégias pluridisciplinares e intergeracionais não se trata só de um convite a não perder, mas transfigura-se num momento de reflexão ímpar.
Em que medida o trabalho de investigação que tens vindo a desenvolver foi importante para a concretização do Lisboa Soa?
Há uma relação bastante direta, porque uma coisa é fazer o doutoramento e ter a possibilidade de fazer aquilo de que sempre gostei – investigar – e a outra é a materialização desse percurso académico, num objeto como o Lisboa Soa. Não me considero uma académia no sentido mais convencional. Preocupei-me sempre em encontrar formas alternativas de comunicar essa investigação, uma delas foram os vários documentários que realizei (ex. o Soundwalkers) e em 2014 organizei a 1ª Edição do Invisible Places que foi apresentada nos Jardins Efémeros. Invisible Places foi um simpósio, um programa de instalações, concertos, percursos sonoros, tendo sempre como preocupação conjugar trabalhos artísticos, com trabalhos de índole teórica. Tivemos mais de 150 participantes, de 25 países diferentes. Deu-me um verdadeiro gozo fazer o Invisible Places.
O ano passado, mais ou menos por esta altura, decidi apresentar alguns projetos. Lisboa Soa surge neste contexto, ou seja, estava a finalizar a minha investigação para o doutoramento sobre paisagens e ambientes sonoros no espaço público e meios urbanos; além disso, sempre que ia a uma conferência nesta área pensei que a investigação académica não deveria estar encerrada em quatro paredes. Estas questões, embora emergentes, são cada vez mais estudadas, pelo que o Lisboa Soa parte muito desta intenção de cruzar a investigação com a arte e no fundo pôr as pessoas a pensar, trazer a questão do som no espaço público, em termos de planeamento e gestão urbanística, através da arte.
Referiste a necessidade de ultrapassar os limites de um certo academismo. Como se processa?
O Lisboa Soa é, e muito, mais uma etapa daquilo que pretendo fazer enquanto investigadora. É pretender “inventar” novas formas para a divulgação do trabalho de investigação. É também a vontade de que as pessoas tomem consciência sobre os sons que as rodeiam, mas sem qualquer atitude moralista, que as pessoas ouçam, mas que tenham a capacidade de perceber que elas são produtoras de som e não meros agentes passivos. Há uma preocupação em ir à raiz da questão, que se compreenda que é importante ouvir e também detetar os problemas associados ao som, que podem passar pelo ruído e o quanto este é limitador de uma boa conversa, por exemplo, ou compreender e identificar as diferentes camadas num espaço público como esta praça ao final da tarde, por exemplo. Terem também a consciência do quanto a qualidade do som ou a falta dela, pode ter implicação na qualidade de vida quotidiana, tanto no plano físico e mental e depois tomarem consciência destas questões. Penso que projetos como o Lisboa Soa podem ser instrumentos importantes para esta tomada de consciência, não só pelo lado lúdico, mas pelo facto de ser acessível a todos, não ser uma coisa encerrada em propostas herméticas, não virado somente para públicos específicos e já conhecedores destas matérias. A ideia é tentar criar esta abrangência.
Ainda hoje os meus primeiros trabalhos em vídeo servem-me de referência, desde a recolha de sons e imagens, às entrevistas que realizava por onde passava, em que fazia uma pequena montagem e enviava para uma conferência. Depois perguntava-lhes se estariam interessados em mostrar o pequeno teaser que na altura tinha para aí uns 5 a 6 minutos montados. A partir da resposta positiva e de ter os apoios necessários conseguia apresentar o meu trabalho lá fora. Este processo ainda durou alguns anos. Não é um método muito tradicional, mas permite-me também ter feedback não só do meio académico, mas também de um público mais geral através das visualizações na net e consequentes comentários e sugestões. Isto possibilita não só chegar a um público mais vasto, como permite que os materiais que realizo sirvam de base, por exemplo, para os professores mostrarem aos alunos. As pessoas, aos poucos, vão ficando mais recetivas e dotadas destas referências e vão percebendo que isso as afeta.
Há cada vez mais instrumentos de regulação urbana para as questões da qualidade do som, talvez as mais conhecidas sejam as cartas de ruído. Para além desta vertente regulamentar, de que forma o Lisboa Soa pode assumir uma implicação política mais notória?
O facto do Lisboa Soa estar integrado na programação do Lisboa na Rua, e desta ser organizada pela EGEAC é um bom indicador de como estas preocupações fazem, pelo menos, parte da matéria de trabalho da Joana Gomes Cardoso e da sua equipa. Mas mesmo a nível europeu, de há uns anos para cá, nota-se uma preocupação maior relativamente às questões do ruído, e aí entra a vertente regulamentar, mas também a vertente educacional e cultural. Pretende-se, também que na vertente política, se altere a lógica de análise, que se deixe as questões meramente quantitativas e se comece a internalizar as questões qualitativas, muitas vezes nem tem somente a ver com o volume, mas mais até com o significado que lhe é atribuído. Há um conjunto de soluções arquitetónicas e urbanísticas que podem ser aplicadas, juntamente com medidas de cariz educacional. Pode parecer um pouco utópico, mas poderão conduzir a resultados positivos. Por exemplo, praticamente hoje em dia ninguém questiona o que o movimento ecologista dos anos 1960/70 defendia. Essas causas fazem parte das nossas rotinas. Espero, que a questão do ruído deixe de fazer parte das nossas preocupações, por lá está, essa consciencialização se ter generalizado.
Partindo para questões relacionadas com a programação, e talvez por enviesamento meu, não deixei de notar algumas similitudes entre os Jardins Efémeros e o Lisboa Soa, não só nos pressupostos subjacentes, mas também nas propostas apresentadas.
Não estou de acordo. Penso que os Jardins Efémeros têm uma dimensão e abrangência ao qual o Lisboa Soa não pode, nem pretende comparar-se, os Jardins são uma proposta pluridisciplinar, ao passo que o Lisboa Soa é muito mais focado. Aqui a ideia é aprofundar ainda mais as questões que tenho vindo a investigar e não tanto alargar o campo de ação.
No último dia vamos ter uma mesa redonda sobre as questões da sustentabilidade, vamos também ter uma pessoa invisual, e sabemos, o quão importante são as questões do som para este tipo de pessoas. Quando se fala de sustentabilidade, esquecemo-nos muitas vezes da perspetiva sonora. Para eles o som é essencial para fornecer pistas, logo se os mesmos não as conseguem ouvir ficam desorientados, seja no silêncio, seja no ruído. Antes teremos uma proposta do Rudolfo Quintas que envolve dois invisuais, que decorre do trabalho que ele tem vindo a desenvolver. Ou seja, através destes exemplos, penso que fica demonstrado a parte política, a parte científica, a parte artística e a parte prática, na medida em que se quer aberto a toda a família. É este ciclo que queremos fechar, aprofundar em contraste com os Jardins que são claramente mais abrangentes e assumem outra escala.
Sendo a questão do som e as suas diferentes abordagens uma preocupação cada vez mais presente, que modelos seguiste para a estruturar a programação do Lisboa Soa?
Tenho algumas referências, como por exemplo o Tsonami Arte Sonoro no Chile, onde curiosamente este ano estarei em residência artística. É um festival que já vai na sua 10ª edição e que reflete sobre muitas das questões que investigo e quero desenvolver, e que gostaria de conseguir com o Lisboa Soa.
A questão intergeracional e as questões educacionais são também uma das tuas preocupações. Porquê?
Já nessa edição dos Invisible Places, em Viseu, realizámos três workshops diferentes e para três faixas etárias diferentes, uma com o Luís Antero, a partir dos 7 para cima, outras para crianças dos 3 aos 6 e outra dos 0 aos 3 anos. Quando fiz a primeira abordagem a esta questão, há sensivelmente 12 anos com o Tiago Pereira, da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, na altura ainda procurava definir o meu objeto de análise, andando pelo país em diversas recolhas. Comecei a dar-me conta que cada lugar tem a sua identidade sonora, que acaba por ser tão importante como outras características, e apercebo-me de um campo de investigação que é a ecologia acústica e que fomenta muito a questão da educação auditiva. Há uma série de wokshops, que se designam por ear cleaning, que ensinam literalmente as gerações mais novas a ouvir, uma vez que estando atentas ao que ouvem consegue-se mudar os próprios comportamentos. No fundo esse passeio sonoro para crianças que temos programado com a Maile Colbert e o Rui Costa vai fazer com que as pessoas pensem o que foi o ambiente sonoro daquele parque, o Jardim da Tapada das Necessidades, no passado.
Nota-se esta relação forte entre o ambiente sonoro e o lugar no teu discurso, pelo que pergunto qual a razão do Lisboa Soa ser no Jardim da Tapada das Necessidades?
Inicialmente a minha proposta nem foi a Tapada, estava para ser no Parque Eduardo VII, uma vez que o Marquês acaba por ser um dos locais mais insuportáveis em termos de ruído. Um dos aspetos que acho mais interessante neste tipo de trabalhos são as instalações sonoras permanentes e que transformam por completo a identidade sonora de um local e que têm a capacidade em criar espaços de conforto acústico. Não é só um desafio, como muda a perceção que temos do espaço e como se poderiam originar essas zonas de conforto. Pensei também em Monsanto, mas a Tapada até foi a Joana Gomes Cardoso que propôs, acabando por ser a melhor opção, por um lado a questão da segurança que é importante por causa do material, por outro, o facto de ser um jardim romântico lindíssimo, com uma estufa maravilhosa para fazer concertos. A coisa foi-se construindo perante aquilo que me foi permitido fazer; ou seja apresentei uma ideia que era mais ambiciosa do que será o Lisboa Soa, mas os diferentes limites que me foram impostos, em termos de espaços e orçamentais, construíram também o projeto, o que obrigou a uma adaptação do mesmo.
Passando para a apresentação dos diferentes projetos.
A nível nacional, o projeto da Sonoscopia que tive a oportunidade de ver num Festival para crianças no CCB, o Big Bang, em que apresentavam duas instalações sonoras. Aliás, gosto bastante do trabalho que a Sonoscopia tem vindo a desenvolver, sendo que o que vão apresentar será ligeiramente diferente do que o que fizeram em Serralves, até porque no Lisboa Soa será ao ar livre. Em Serralves era uma peça dentro de uma sala, em que se interagia e em que mexendo na mesma se originavam diferentes sons, chegando a parecer estar dentro de um instrumento, tendo um carácter lúdico muito acentuado. Agora, ao ar livre, procederam-se a pequenas adaptações, mas mantendo o carácter lúdico e interativo intocado. Por sua vez, o Ricardo Jacinto colaborará com o Gustavo Costa, que partindo da ideia de panóptico constroem um “fonóptico” em que colocam os instrumentos no centro, desde cachimbos de água com microfones e pequenos aparelhos que provocam som, com o público todo à volta. Além disso, ainda haverá o Rafael Toral, que era fundamental estar nesta 1ª edição. Li uma entrevista dele na The Wire, salvo erro, no princípio do meu trabalho de investigação, e na altura tive a oportunidade de o entrevistar, sendo que sempre gostei de falar com ele. Ele irá fazer uma performance pelo jardim com os instrumentos que o próprio constrói de uma forma espontânea, gerando uma certa estranheza, ou pelo menos espera-se.
E em relação aos nomes estrangeiros?
O Akio Suzuki, um pioneiro da arte sonora que já vem desde os anos 60, sendo uma referência enorme e é uma espécie de xamã do som. Ele tem um projeto que é o Oto Date Plate que gostaria de ter trazido, mas não sendo possível por questões orçamentais, optou-se por uma performance com temas com que trabalha frequentemente, como por exemplo a ideia de eco e o som no espaço público. O Lisboa Soa vai abrir na quinta-feira com o Allard Van Hoorn, que no fundo vai traduzir a arquitectura em instrumentos, ou seja chega a determinado espaço arquitetónico e manipula o som, amplificando-o por vezes, sendo que na estufa vai atuar juntamente com um grupo de bailarinos portugueses que irão interpretar fisicamente os sons que estão a ser produzidos no momento. Também o facto da Camille Norment ter vindo, deixou-me super contente. Ela irá tocar uma harmónica em vidro, instrumento que terá sido tocado por Mozart e outros compositores, tendo sido banida no Séc. XVII, salvo erro, pela sua capacidade em gerar êxtase. Ela virá em trio acompanhada por um instrumentista que irá tocar um instrumento tipicamente norueguês e por uma guitarra elétrica. Tem, também, um trabalho enorme ao nível de instalações, tendo representado a Noruega na Bienal de Veneza. Descobria-a pela participação que ela teve no MOMA na primeira grande exposição dedicada à Arte Sonora.
Gostaria de destacar as diversas instalações sonoras espalhadas pelo jardim, por exemplo a do Marco Barotti, italiano radicado em Berlim, com uma instalação, a nível visual e sonoro, bastante bonita e que causará alguma estranheza, tanto para as pessoas, como para as espécies autóctones do parque; estou muito curiosa para ver como os gansos irão reagir, uma vez que os “cisnes” por ele construídos têm umas antenas parabólicas, que, na cabeça, emitem uma composição à base de sons tecnológicos misturados com sons da respiração humana e com outros sons orgânicos, numa espécie de crítica à cultura dos mass media. Há ainda a instalação do Rodolfo Quintas que converte em retratos sonoros o movimento e a presença das pessoas, a instalação do Miguel Carvalhais e do Pedro Tudela na Casa dos Frescos e por último a instalação sonora do João Bento no Jardim dos Catos, em que ele anda a recolher os sons desse jardim há mais de um mês.
Miguel Carvalhais e Pedro Tudela
A partir dos trabalhos apresentados haverá alguma publicação?
Além do Lisboa Soa apresentei propostas para a segunda edição do Invisible Places, que irá ter lugar nos Açores, e uma série de documentários em colaboração com a RTP. Todas as apresentações serão gravadas em vídeo e constarão da recolha que estou a desenvolver.
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Lisboa Soa
01 - 04 de Setembro de 2016
Jardim da Tapada das Necessidades