Fotografias: Carlos Martins e Pedro Sadio.
A aldeia de entardecer eterno
Passo descontraído, cabeça em registo catavento e olhar fixo num ou noutro pormenor. Procurar as semelhanças e descobrir as diferenças. Pouca coisa mudou em relação à edição anterior do Festival Bons Sons, muito se manteve. E o que se manteve é para guardar por muitos e largos anos, “Uma lição para o futuro” como escreve Mário Lopes em artigo do Ípsilon. Lição essa que vai desde a hospitalidade, ao cuidado e limpeza com que se cuidam os espaços, a partilha intergeracional, carrinho de bebé e bengala lado a lado, e sobretudo o trabalho dos voluntários, insuperável.
Num dos pátios, entre o cheiro a carne na brasa e tinto de pacote, a simbiose entre o tradicional e pós-moderno?, mesa corrida e conversa que não se procura, mas que nos encontra. Palavra cá, palavra lá e um tema em comum – música, música portuguesa para ser mais concreto e afirmação cravada de sentença: “Portugal não é só fado”. Não se pode deixar de concordar com Hugo Correia dos FadoMorse e com a vontade em desafiar tradição. Mas se coisa se deve também ter como lição é que para cada afirmação há o seu contrário. De facto “não é só fado”, mas tanto na sua vertente mais instrumental (guitarra portuguesa), como nas vocalizações femininas e masculinas o fado é genica. Será dos ares de aldeia? Não só. Gisela João já não é novidade, e ter sido considerado como o melhor álbum de 2013 por várias publicações de referência aí está para o comprovar, e os 50 anos de António Chaínho não obrigam a menos do que referência a “Mestre”, com letra maiúscula e respectiva vénia.
Demos prioridade às Senhoras, as velhas maneiras a isso obrigam, e presença e voz de Gisela são para recordar, como mínimo, em cada belo entardecer do Verão que ainda falta. No Palco da Eira, mudança de palco mais que acertada, aquele momento em que o sol ainda não partiu e a noite não chega, um vestido branco e o cabelo castanho que o vento engrandece e tudo o resto; resto que é tudo – energia, simpatia que transborda e que celebra a alegria de ali estar; e sim um grande prazer em ser reguila. A música de Gisela tem o poder de abraçar, de abraçar os registos vocais mais fortes, o silêncio e as melodias do trio de cordas que a acompanha. E de braços gigantes abraça as suas referências – Beatriz da Conceição e Voltaste, Tony de Matos e Sei finalmente ou ainda Carlos Ramos e Não venhas tarde. Abraça o risco ao pedir a Ana Matos (vulgo Capicua) para recriar, actualizando, a letra de A Casa da Mariquinhas e com a simplicidade que se lhe reconhece, conta-nos que tudo não passou de uma conversa de uma hora via Facebook. Sem tretas. Terá havido hora mais útil passada nesta rede social? E sem tretas, quebra regra e tradição de deixar o palco para encore. Quer ficar e nós queremos ouvi-la. Não é fadista quem quer, mas sim quem nasceu fadista, diz-se; e em Barcelos nasceu a Fadista.
(continua)